cotidiano

Como tive um dos dias mais felizes de minha vida ou “o resgate do resgate”

Achei que um dia, para ser considerado um dos mais felizes da minha vida, deveria ser com a última sexta-feira, quando descobri que seria tio de uma menina. Ou como hoje, que saio de férias junto com Marcela, que faz aniversário. Mas o sábado passado veio para desfazer meus preconceitos contras as platitudes facebuquianas: a felicidade está na mudança abrupta de expectativas. Eis o meu relato sabatino. Ele não é curto, mas garanto que, ao término da leitura, verá como foi edificante para mim.

Despertei as 6:10 em ponto, em Brasília. Dormi apenas duas horas e já precisava ir ao aeroporto. Antes de decolar, às 8:00, liguei para meu sogro, sr Maurício, afim de saber se estava tudo preparado para o carreto. Carreto o qual transportaria geladeira, duas camas, uma mesa, um armário e cadeiras para uma pequena casa que estamos construindo na chácara. Sr Maurício disse que estava tudo confirmado, que chegariam às 8:30 e já começariam a preparar tudo. Esperávamos sair às 9:30 e estar de volta ao meio dia, no mais tardar.

Aterrissei às 9:35 em São Paulo. Enquanto pegava o táxi para casa, liguei uma segunda vez para o sr Maurício. O carreto ainda não havia chegado: sr José, o carreteiro, teve dificuldades de achar um ajudante, então estava trazendo um outro conhecido. Eu fui enfático na necessidade de mais de uma pessoa, pois conheço bem meu sogro e meu pai: sem o ajudante, os dois fariam questão de carregar boa parte do peso até o caminhão.

Eu estava com muito sono. Sr Maurício também, havia dado plantão no dia anterior. Sr José chegou, por fim, às 10:30. Pelo telefone disse que estava estacionando e que se perdera pela Rua Vergueiro. Só então subiu para buscar o primeiro móvel: uma pesada mesa de madeira. Ao abrir o elevador, conhecemos Sr José pessoalmente pela primeira vez, o estereótipo do que o paulistano chama, talvez preconceituosamente, de ‘pessoa simples’. Um pouco quieto, submisso e cordial.

Em seguida chegou um senhor de uns 65 anos, sr Manoel, mas que tinha o vigor e aparência de seus 85. Sr Manoel era, obviamente, pai do Sr Jose. Não só isso. Qual a nossa surpresa ao saber que ele seria o tal ajudante! Pronto, percebi que teria de passar o dia carregando a geladeira para evitar que pai, sogro e em especial sr Manoel esculhambassem suas colunas vertebrais.

Carregamos uma mesa, um armário e um banco. Deu trabalho. Sr Manoel, o senil ajudante, até que ajudava: bloqueava o infravermelho do sensor do elevador, mantendo-o parado no andar. A conversa começava a fluir, com assuntos relacionados ao clima, ao trabalho e à massa dos diversos objetos erguidos.

Passamos para a segunda fase: ir à casa de meu pai buscar sua antiga geladeira. Ajudamos sr José a estacionar sua pequena carreta Hyundai por perto do prédio. Ao descerem do veículo, percebemos que havia mais uma pessoa: uma menina de cerca de 7 anos. Não basta trazer seu pai para a labuta num sábado chuvoso, né?

Subimos nós 5: eu, sr Mauricio, sr José, seu pai e a garotinha. Entramos na casa dos meus pais e começou o planejamento de como seria melhor retirar a pequena geladeira. Mamãe nos deu uma geladeira grande e bem nova. Ela estava preocupada em como a levaríamos para baixo, confrontando sr José com algumas perguntas básicas. Quando houve um momento propício, papai observou que sr José não aparentava ser muito expedito (um de seus preferidos vocábulos). “Onde vocês conseguiram essa indicação?”. “Vimos num anúncio de poste em Osasco”. Como você já viu, papai estava certo.

Enquanto os outros conversavam, decidi puxar assunto com a menina, a qual supus ser filha do sr José. “Como é seu nome?”. “Nicole!”, respondeu ela com o ar tímido de criança que ainda não deu confiança ao estranho. “Nicole, que nome lindo! E você trabalhando cedinho no sábado! Cadê o papai?”. Esperei que ela erguesse o dedo em direção ao seu José. Nada. Achei que ela estivesse só com vergonha, reforcei a pergunta. “Cadê papai Nicole?”. Ela então sorriu, com a mão na boca, até dizer “Ah… eu não sei explicar direito.”. Pois é. Ela nunca conheceu o pai. Você que já acariciou a barriguinha de uma gordinha e perguntou o nome do bebê já pode dormir mais tranquilo. E sim, depois entendemos que sr José era o avô. “Avô, neta e bisavô fazem carretos em Osasco e região” daria um bom anúncio para colar nos postes de Osasco.

Descemos com camas e colchões além da cobiçada geladeira. Carregamos tudo. Para colocar a grande caixa branca dentro da carreta, foi mais trabalhoso. Claro que sr Mauricio e meu pai também precisaram fazer força, já que o viril ajudante de 65/85 anos virou café com leite. Partimos então para Osasco, onde moram meus sogros, buscar algumas cadeiras restantes antes de partir rumo à Castelo Branco. Fomos em um outro carro, junto com a minha esposa, que acabara de retornar de um curso de auto-maquiagem (sim, isso existe).

Já era uma da tarde quando minha sogra abriu a porta. Sr José ainda não havia chegado. Passaram-se 10, 15, 20 minutos, não conseguíamos contato nem no celular. De repente meu sogro recebeu um SMS do celular do Sr José e leu em voz alta. Tive de pedir para ele me mostrar a mensagem de texto pois não acreditava. No LCD do telefone lia-se “Estamos no cinema”. WTF? No intervalinho de uma geladeira e um fogão, um cineminha? Não deu tempo nem de ficar com raiva, pois logo sr José tocou a campainha, confirmando que havia apenas esbarrado numa mensagem automática de seu Android.

Quando finalmente entraram, minha sogra perguntou o que aquele vôzinho estava fazendo ali carregando peso. Tive de explicar que ele não era um avô que carregava peso, e sim um bisavô, que nem peso poderia carregar.

Fizemos alguns sanduiches para levar no caminho, afinal, deveria levar mais uns 45 minutos para chegar lá, 30 minutos para descarregar e 45 minutos para voltar. Chegaria de volta só as 3 da tarde. Já era um prejuízo grande em relação ao projeto inicial de almoçar em São Paulo. Sr José e toda sua árvore genealógica optaram por comer os sanduíches dentro do caminhão antes de partir, e Nicole para Marcela: “tia, o sanduíche de linguiça tava gostoso, mas deixei o de chocolate pra jantar porque sou ruim de comer!”. A linguiça era salame, o chocolate era nutella.

Marcela dirigia na Castelo Branco. Eu dormia e nem vi o tempo passar.

Chegamos. Agora era só descarregar e voltar pra casa. A chácara tem três platôs. Um primeiro, mais alto, para uma futura casa. O segundo, onde há a edícula que estamos construindo e a piscina. E um terceiro, gramado, para um jardim. A diferença de altura entre os platôs é considerável, são unidos por uma rampa um pouco íngrime. Falamos para sr José estacionar no primeiro platô, que descarregaríamos tudo e desceríamos com os móveis até a edícula. Ele pediu para descer ao segundo platô, para ficar mais próximo e ter menos trabalho. Desaconselhamos na hora: semanas atrás sr Maurício havia atolado o carro ao tentar subir de volta essa rampa, pois a grama torna a subida quase impossível. Ele disse que não havia problema, que a carreta tinha bastante tração e que estava acostumado. Reclamamos. Ele insistiu. Por fim, cedemos.

Se você achava que a história estava sem sal e não tão ruim, pense novamente.

Eram quase 2 horas da tarde quando começamos a descarregar. Não foi tão difícil. Nicole brincava pela grama enquanto colocávamos tudo em seu devido lugar. Bisa Manoel carregava os travesseiros mais pesados. Sr José já podia pensar nos 300 reais que receberia, o trabalho estava próximo do fim.

Todos prontos para ir embora. José, Manoel e Nicole subiram na cabine do caminhão. Comecei me assustando ao perceber que ele não dava a partirda, a bateria falhava. Na quarta tentativa, ligou. Agora só faltava subir a rampinha para ir do segundo platô para o primeiro e seguir na Castelo Branco. Saindo as 2 horas, chegaríamos as 3 como o segundo plano indicava.

Estávamos apreensivos com a subida da rampa. O caminhãozinho começou a subir os primeiros 3 metros, engatado na primeira, com facilidade. Momentos depois começaram as onomatopéias. Os pneus giravam em falso na grama e assoviavam intensamente, até patinarem e formarem pequenos buracos de grama recém-paga. Isso tudo em questão de segundos. Não contente e sem atender aos nossos gritos de ‘espera!’, sr José descia a rampinha e rapidamente acelerava, gerando mais buracos, sujeira, sons diversos e desespero. Sim, o desespero nos arrebatou muito cedo, dado nosso histórico anterior com esse declive. Já o sr José só veio a exibir uma cara de horror, medo e desesperança minutos depois, pois ainda acreditava em seu forte braço e na potente embreagem do caminhãozinho. Depois da segunda ou terceira tentativa, já sabíamos do tamanho do problema.

Tentamos tudo isso que você está sugerindo: papelão, pedaços de madeira, rezas, pegar embalo, tentar subir de segunda marcha, etc. Nicole veio pedir um copo d’água, nem isso tinhámos pra dar naquela construção. Ela tomou torneiral. Depois de mais um bom tempo, decidi ir até a portaria tentar conversar com algum responsável pelo condomínio, pra ver se poderiam ajudar. Já passávamos das 3 da tarde.

Na portaria vi um ponto de luz: o condomínio possui um trator, que ajuda até nesses casos. Liguei para a central, pedindo socorro imediato e remoção de um caminhão atolado. A mocinha me avisou que o tratorista ficava só até às 4. Estaria eu com sorte? Desligo com a central e ligo para o tratorista, com uma velocidade de digitação invejável. Ainda eram 3:40. Ao atender, contei a história acima em uns 45 segundos, e ele foi mais rápido ainda pra dizer que aquele sábado ele saiu mais cedo e estava em Sorocaba. “Condomínio excelente com auxílio tratorista, mas não aos sábados”, daria uma boa propaganda também.

Liguei para Marcela para avisar que não conseguiria socorro, e uma nova boa notícia: Wagner, nosso pedreiro, passou por lá para resolver umas coisas e viu a nossa situação complicada. Ele falou que iria encontrar um amigo para ver se poderia ajudar. Saiu com a moto. Quando eu cheguei, ele não estava mais lá. Nicole, a ruim de comer, já estava devorando o pullman com nutella e brincando com Marcela (“tia, só vou comer metade”). Nicole quer ser “veterinária, bióloga, bióloga marinha e ter um criadouro de borboletas”. Certo Nicole, mas antes você precisa estudar, e antes disso precisa voltar pra casa. De preferência hoje.

Sr José já estava muito quieto, talvez com um pouco de vergonha. Eu estava com uma mistura de raiva e medo. Medo porque começava a escurecer, já eram quase 5 horas da tarde. Nicole e Marcela regavam as plantas. Todos esperávamos pela volta de Wagner. Na minha cabeça eu pensava em como faríamos no caso de não conseguir retirar o caminhão naquele dia. Na verdade, já pensava nisso fazia um bom tempo, mas queria fingir que não. Voltaria com todos para Osasco, 6 num carro, para só na segunda feira ligar para o tratorista sorocabano? Dormir no carro? Ligar pra polícia? Em um momento de profunda agonia, sr Maurício deu a ideia de ligarmos para o seguro do carro e falar que estávamos atolados. Ele só não pensou em como explicar, quando o guincho chegasse, que aquele carro era um transformers-caminhão. Sr Manoel continuava sendo facilmente substituído por um cone. Marcela, ainda toda maquiada, fazia cara de choro, gerando um curioso contraste. A situação era tão ruim que claro que eu tirei um instagram, onde você pode ver Nicole pendurada na Marcela, meu sogro preocupado e sr José em mais uma de suas tentativas inócuas:

Bisa Manoel não estava na foto. Creio que ele estava ajudando a carregar alguns copos. De plástico.

5:30. Wagner chegou de moto, disse que o amigo estava vindo ajudar. Torcia para o amigo dele não ser alguém de 85 anos. Chegaram. Uma caminhonete enorme, muito maior do que você está pensando, com um tal de Willian dirigindo, dizendo que estava indo descarregar e então dava pra dar uma ajuda nesse meio tempo. Descarregar o que, se o caminhão era aberto? Estava escuro e demorei para perceber a caçamba enorme, com entulhos e muita sujeira.

Sim, nosso resgate era, basicamente, um caminhão de lixo. Mas pra gente parecia um trio elétrico, de tanta alegria que nos trouxe.

Willian disse que seria fácil. Sr José pegou as cordas da geladeira e amarrou seu carreto. Willian desceu de ré, bem devagar, até o começo da rampa. O caminhão era tão grande que derrubou um dos mourões. Marcela gritou alguma obviedade do tipo: “não vai descer muito se não vai atolar também”. Impossível! Um daqueles caminhões de lixo que usa rodas duplas era tudo o que precisávamos. Amarramos a outra ponta.

Primeira tentativa. Willian começa a puxar o carreto de sr José e a corda estoura. Rapidamente conseguimos mais cordas para dar uma firme sustentação.

A segunda tentativa é a que demonstrou a sapiência de Marcela. Ao puxar um pouquinho, o pesado caminhão de Willian não girava mais as rodas, mas também não patinava! Atolou. Sim, dois caminhões atolados. E atolou de uma maneira esquisita, no começo da rampa, onde o declive é mínimo! Eu estava atônito. Pensei em ligar pro meu pai e pra minha mãe e pedir colo. Apenas Willian não estava nervoso. Claro, ele estava nessa lama há apenas 20 minutos.

Quando consegui colocar meus pensamentos no lugar, disse: vamos salvar o caminhão grande e depois tratamos do pequeno. Diminuir o prejuízo. Mesmo sem as cordas amarradas o gigante não se movia. Mais tentativas, mais tempo, mais tensão.

Willian disse que areia o ajudaria a desatolar, colocando sob os pneus, para dar atrito. Wagner foi ajudá-lo. Eu já estava acreditando mais em mandinga. Mas eu ainda não estava desesperado. Ainda.

O desespero chegou no momento que percebi onde estava o nosso carro e onde estava o caminhão-caçamba. O gigantão BLOQUEAVA A PASSAGEM DO NOSSO CARRO, mesmo estando no primeiro platô!! Tipo, 3 carros chafurdados na lama. Todos os três! Nem mesmo o plano Z de levar neta, vô e bisavô pra casa estava descartado. O *melhor* plano agora era dormir sem água, sem luz e ao relento, na edícula em construção. Junto com toda a família de Sr José, e talvez com Willian e companhia.

Não poderia ficar pior, poderia?

De repente ouço buzinas. Um carro Honda se aproximando. Wagner disse que eram uns amigos, ele os havia chamado quando percebeu que o grandão também atolou. Willian gritou: “Olhaí, chegou O RESGATE DO RESGATE”. Pois é. Estávamos salvos-salvos com o resgate-do-resgate.

Mas, no *memso* momento em que esse carro estacionava, Willian conseguiu fazer o monstrão desatolar, saindo de segunda marcha, por cima da terra que já estava toda arenosa. Meu grau de felicidade mudou bruscamente. Fiquei muito animado. Querendo ou não, Willian havia desatolado dois carros: o meu e o dele. Só faltaria o carreto do sr José. Mas esse último, se dormisse na chácara, já era lucro!

Willian e Wagner decidiram tentar o mesmo truque com o carreto: jogar areia debaixo de todos os pneus. Bastante areia, em todas as direções. Em menos de 3 minutos sr José já estava fazendo mais uma tentativa e…. com sucesso! Subiu com extrema facilidade. Não acreditava em meus próprios olhos. Comecei a dar saltos e socar o ar, como se fosse o Pelé fazendo um gol, e gritava ‘Yeahhh’, pedindo para Marcela e sr Mauricio me acompanharem nos pulos! Eles não gritaram, nem pularam, mas acho que compartilharam de minha euforia. Falei bem alto “é o dia mais feliz da minha vida!”.

Nesse conto, escrevi 70 parágrafos ladeira abaixo e os dois últimos a redenção. Eis a fóruma da felicidade.

Paguei os 300 ao sr José, perguntei ao Willian quanto lhe devia. “Só 50 da gasolina!”. Deixei 65 reais. Deixaria o quanto tivesse na carteira, mas isso era tudo. “Obrigado patrão, lembre-se da gente quando precisar levar entulho”. Sim Willian, lembrar-me-ei *sempre* de você.

Já estava escuro quando saímos rumo a São Paulo. Ainda paramos no Rei da Pamonha. Vencemos. He-man poderia dar uma lição de moral com tudo isso.

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