cotidiano

Viu como eu não estava mentindo?

Avenida Paulista, sexta-feira, 18:30. Dois paulistanos, um canadense, trajeto consolação-paraíso. Hora do rush para nós pedestres e a aglomeração é grande para as largas calçadas da avenida. Conversa em inglês já na altura do MASP:

– So are we heading to a sushi place?
– Yep. It’s not far from here, it won’t take too much longer. – pronuncio com erros e acentos brasileirescos.

O canadense caminha sempre entre os dois brasileiros, numa velocidade acima do esperado.

– Que língua vocês estão falando? – uma vez feminina

Só eu ouço. Vem de trás. Por um átimo não percebo que a pergunta se dirige a nós.

De soslaio noto que a pré-adolescente usava um tom relativamente infantil para a sua idade. Reluto se devo responder.

– Inglês.
– Que legal! bliu bla isbliu lau lou – balbucia quase que insanamente numa tentativa de emitir sons próximos da tal língua, e para minha maior estranheza completa: – Eu falo alemão!

Pausa, comprova:

– Wie heisst du?
– Ich heisse Roberto, un du?

Recebe a informação assustada, para de andar, interminável intervalo de 3 segundos. Conclui:
– Viu como eu não estava mentindo?

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O que é preconceito? De Higienópolis a Danilo Gentili

Em um estado do sul do país, estávamos em três amigos. Um deles tinha um encontro marcado com uma garota da cidade. De posse do carro do outro amigo, fomos todos buscá-la. Depois de uma curta introduçao, resolvi quebrar o gelo:

“Poxa Fulano! Que óculos escuro horrível este aí!” – eu disse.
“É mesmo!” – respondeu o proprietário do veículo.
“É verdade, puta óculos de preto!” – ensurdeceu-nos a menina.

Não houve reação. Nenhum de nós estávamos preparados para algo assim, no século 21. Achava que isso não existisse no Brasil. Pessoalmente me senti impotente de começar qualquer argumentação. O que falar pra ela? O silêncio doía aos nossos ouvidos e nossas almas.
Não lembro quanto tempo se passou até que alguém pudesse reunir forças para abrir a boca e iniciar algum assunto banal. É como uma daquelas piores memórias, que tentam se esconder em nosso subsolo. Revejo a cena pensando em possíveis formas de “jogar tudo que penso na cara dela”. Somente muitos segundos depois, que pareceram uma infinidade, a conversa reiniciou, com qualquer outro comentário banal. Mesmo assim, minha cara-de-bunda era nítida e permaneceu por muito tempo, como a de meus outros dois amigos.

Esse é um exemplo claro e bárbaro. Não há como ficar mais explícito… talvez uma bisavó que não gostava de que seu bisavô contratasse “escurinhos” possa competir.

Refletindo esse caso, percebi que devo continuar me policiando para nunca mais utilizar expressões com as quais convivi na adolescência. É frequente ouvir, em São Paulo, que esse é um óculos “de baiano”. Trabalho com profissionais baianos que se vestem melhor que eu e de muita inteligência, como então usar um termo desses? Há mais casos horrorosos, como se referir a um trabalhador como nordestino, um porteiro como cearense. Meu colega mais inteligente da faculdade, o chouchou de la maitresse, assim como amigos da profissão, é de Fortaleza, e devo muito dos meus conhecimentos a eles.

Se você tenta intervir, poderá receber a justificativa número 1 do manual do ignorante moderno: “ah, mas são os próprios nordestinos/negros/judeus/pobres/(coloque sua minoria (maioria?) aqui) quem têm preconceito com eles mesmos”. De chorar.

Mesmo se existisse uma minoria em que todos seus participantes possuissem determinada característica: podemos, devemos, queremos explicitar uma diferença que tenha conotação negativa?

Há algumas situações mais confusas.

E se o menino fosse negro e se pintasse de branco, como Cirilo do Carrossel? Seria tão engraçadinho? E a questão da camiseta “100% negro”? O professor Kabengele Munanga discute bem essas questões específicas de negros e brancos no Brasil.

Se Shylock, de Mercador de Veneza, pode ser interpretado por Al Pacino de forma tão amigável, podemos descartar a hipótese de preconceito da peça?

E chamar um amigo de veado, para brincar com ele, é aceitável? Podemos associar a cor rosa a homossexualidade, pela piada? E se ele for um jogador de volei homossexual, pode? Devo pensar duas vezes antes de brincar da mesma forma que as gerações antigas faziam com os meninos: “ah! e você vai querer uma bonequinha de natal? só falta me falar que ganhou roupa rosa!”.

E o garoto alto e magrelo, vale ressaltar sua semelhança com uma girafa? Não seria, de alguma forma, próximo a oferecer banana ao macaco? Ou seria uma justificativa para Danilo Gentili chamar negros de macacos:

Se é engraçado piada de gay e gordo, por que não é a de preto? Porque foram escravos no passado hoje são café-com-leite no mundo do humor? É isso? Eu posso fazer a piada com gay só porque seus ancestrais nunca foram escravos? Pense bem, talvez o gay na infância também tenha sofrido abusos de alguém mais velho com o chicote.

O mesmo Danilo Gentili que faz piada do Holocausto, ultrapassando o limite do politicamente incorreto, depois do terrível incidente que da infeliz moradora de Higienópolis criadora do meme “gente diferenciada“:

Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.

Danilo Gentili não está sozinho. Rafinha Bastos que o diga.

Simples brincadeiras? Acho que todas essas expressões já tiveram sua hora, e na próxima geração serão (hão de ser!) consideradas absurdos, como hoje são algumas que nossos avós e bisavós usavam. E não é nosso objetivo sermos melhores do que antes?

Será o fim, inclusive, da piada de português?

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A miséria humana: o mineiro só é solidário no câncer

A coluna do Luiz Ponde, na folha de São Paulo, de 28 de março de 2011, intitulada “Só os neuróticos verão a Deus” (infelizmente apenas para leitores), me arrepiou. Ela começa assim:

Tenho pensando demais em dinheiro e sucesso. Não porque eu os tenha em excesso (haveria uma “quantidade justa” de dinheiro e sucesso?), mas porque, sem eles, somos afogados no sentimento da inexistência. Talvez por isso tanta conversa fiada sobre sermos honestos e desapegados quando, na realidade, em silêncio, babamos por dinheiro e sucesso. Haverá amor sem dinheiro e sucesso, ou terá razão o grandioso Nelson Rodrigues quando diz que dinheiro compra até amor verdadeiro? Aqui, ele fala a anos-luz de distância da sensibilidade infantil da classe média e de seu marketing da ética que assola o mundo.

Ponde cita Nelson Rodrigues e Fiodor Dostoievski. Mais especificamente o dilema “se Deus não existe, tudo é permitido“, conhecida paráfrase ao artigo de Ivan Karamazov. Nelson Rodrigues é invocado com a curta peça “Bonitinha, mas ordinária“. Acabei lendo para ver se gostaria tanto quanto de um livro de Dostoiévski, sem muito sucesso. O livro repete o mantra “O mineiro só é solidário no câncer“, atribuída a Otto Lara Resende. Peixoto, amigo do protagonista Edgard, tira dessa anedota o mesmo tema de Irmãos Karamazov: “Você diz que não é o mineiro, mas o próprio homem, o próprio ser humano. E se o homem é isso, tudo é permitido. Eu concordo. Sou da mesma opinião.“.

Essa curta frase alivia diversas questões morais que aparecem na trama, afinal, se somos solidários apenas por estarmos em uma situação melhor ao do colega, o que resta de altruísta? o que resta de amoral? Edgard luta contra esse vazio, esse ateísmo didático, para se mostrar diferente dos outros e de que há sim uma certa esperança.

Será mesmo que somos apaixonados pela tragédia e desgraça dos outros? Este post de Alexandre Soares nos lembra de que como somos atraídos por grandes desgraças. O cinema-pipoca, #1 box office, já não é apenas o Batman e o James Bond. Agora inclui os sucessos com pacientes terminais que perderam sua família abruptamente. Por que gosto tanto de American Beauty e Weather Man? Em Crime e Castigo, há uma passagem (não achei) em que Dostoievski fala sobre uma pequena alegria que subitamente nos atinge face a notícia de morte de um conhecido. Meu pai diz que “o humano só aparece na sua tragédia“. Na dos outros, também. É o problema do bem.

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Carta Capital e Veja

Reinaldo Azevedo, o homem-dicionário-etimológico-sinônimos-antônimos da Veja, blogou sobre o recente desabamento de solo em uma obra do PAC. Politiza, dramatiza e escarnece situações como essa em diversos posts.

Há quatro anos, reclamou da imprensa no caso do desabamento do metrô em São Paulo, justamente pela odiosa politização. Jogou com as palavras, intitulando-o de buraco do jornalismo. Isso lembra muito de como a Veja tratou a culpabilidade do estado nos desastres pluviais.

Claro que houve exageros e Reinaldo Azevedo bem observou. Aliás, no caso do massacre do Realengo, foi coerente ao defender a posição de Marco Maia do PT.

E a Carta Capital? Bem, faz tudo ao contrário. Faz capa com o buraco e põe o estado dentro dele. Só faltou escrever PSDB. Como ela anunciou a queda do solo da obra do PAC? Não sei… e procurei bastante.

Mais parcial que isso, apenas comentarista de futebol. Qual o problema? Nenhum, apenas parem de levantar a bandeira da imparcialidade política!

PS: quem nunca viu, vale assistir o Reinaldo, o cara que sempre me impressionou com o português pra lá de refinado, se debatendo em faniquitos na sua entrevista ao Jô. Apelar para o mimiquês e usar tom de galhofa mostra que até o Lula é mais tranquilo quando afirma em off que tênis é esporte de burguês.

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Realengo: culpa do indivíduo ou da sociedade?

Recebi um email de Antonio Afonso, amigo de meus pais. Nele continha um link para esse post que fala sobre a parcela de culpa da sociedade no massacre. Difícil ler, afinal, quantos garotos não foram hostilizados e, mesmo alguns doentes, nunca mataram uma borboleta? Ele não tinha possibilidade de escolha, nenhuma individualidade?

Como um óbvio fã de Dostoiévski (como se algum pseudointelectual não fosse, exceto Nabokov), o dilema me lembra de um dos sermões de mestre Zózima, onde afirmava que todos somos responsáveis por tudo. Monstruoso pensar que existe uma parcela de culpa nossa?

Um post relacionado cita outro caso de massacre estudantil, o de Cho Seung-hui na Virginia Tech. Diz que o motivo “seguramente não foi porque é um “monstro calculista”, como berrou em manchete irresponsável O Globo, sugerindo que a tragédia teria causas individuais e não sociais.“. Seguindo esse raciocínio, fico com medo de que tirem a mesma conclusão para genocidas que governaram diversos países e comandaram guerras e extermínios étnicos. O artigo termina com “Cho não é um monstro. Monstruosa e doente é a sociedade que o produziu, presidida por George Bush, a quem O Globo não chama de “monstro”, embora seja responsável por mais mortes do que todos os assassinos em massa na história dos Estados Unidos” … aposto que alguém poderia modelar uma explicação antropológica para Bush, mostrando que ele não teve escolhas, e a sociedade capitalista é a culpada.

O pai de alguma das crianças vai conseguir perdoa-lo, mesmo considerando-o doente e acreditando que uma parcela da culpa seja da sociedade? Não sei, mas se ele estivesse vivo, seria um forte candidato a terminar como o antagonista de O segredo de seus olhos.

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Voltando pra casa

Durante o ano de 2009, toda vez que pegava um avião torcia para que passasse a chamada da TAM do banzo cearense:

Emocionante.

Essa incessante busca pela própria identidade pode acabar dentro de nosso próprio lar. Parece que eu me encaixo aqui. Existem outros casos, e admiro a coragem e a felicidade de quem se encontrou muito longe de sua família, de seu país. Salvo quem viajou para fugir, em vez de se encontrar.

Essa chamada da TAM me remete a alguns filmes do Sam Mendes, o diretor de Beleza Americana. Em Away We Go, um casal tentando encontrar o melhor local para construir sua família. Já em Revolutionary Road, o casal terminal em seu antigo lar, mas antes passando por muitos sonhos que serão quebrados. Sonhos que parecem muito com os de nossa juventude: viver de pouco, como em Walden, e focado na família, como em Felicidade Conjugal, inspirados por Into the Wild.

Também me lembra do mesmo Tejo de Fernando Pessoa, e o peso que ganha o rio que passa próximo ao seu lar. Já havia blogado sobre esse poema anteriormente.

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O amanhã e a manhã

Amanhã“, formada de “a+manhã“. Sua etmologia parece ser de “ad maneana“, onde mane/a/na também pode ser usado como manhã.

O amanhã me trouxe muitas surpresas. Era noite de festa. Um aniversário talvez. Eu devia ter 10 anos quando meu primo Claúdio, à meia noite e meia, demonstrava seu conhecimento sobre meridianos, mesmo 1 ano mais novo:
– Já é sexta feira.

Como poderia ser sexta-feira? Era quinta-feira, tinhamos acabado de jantar e eu ainda não havia dormido. Fiquei indignado. Cláudio então me explicou que o término de um dia não está relacionado ao ato de dormir. Curioso pensar que todos passamos por esse aprendizado, de que o “amanhã” não é dormir “até a manhã seguinte“. Lembra-se de como era ver o relógio passar das 11:59 para as 12:00? Encanto pueril.

Em o Mercador de Veneza, vi que o inglês shakesperiano utiliza “good morrow“, e daí temos o “to-morrow“. Em russo a brincadeira é à avessa: “vetchera” é ontem, e “vetcher” é noite. Procurei rapidamente em outras linguas, mas não achei a relação. Aposto que o português, o russo e o inglês não são as únicas.

Tento ir mais longe: quando será que tivemos os primeiros conceitos do amanhã? Quando criança, nada havia a ser feito amanhã, só existia o hoje e o agora. Creio que o amanhã só surja junto com as primeiras responsabilidades, as primeiras lições de casa, a expectativa para a chegada do natal. Parece ser um pouco antes da pré-adolescência. Deve haver estudos sobre isso.

Na infância reinava a falta de preocupação com o amanhã. Bom? Talvez. Mas melhor agora, que tenho o dobro, podendo ansiar pelo amanhã, além de gozar o hoje.

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Kadafi e seus antigos amigos

Hoje, começaram os ataques a Líbia, para evitar que Kadafi… faça o que mesmo? Ele já não era nosso amigo? Vejamos:

Kadafi e Obama

Kadafi e Tony Blair

Kadafi e Berlusconi

Kadafi e Sarcozy

Kadafi e Lula (and Evo Morales de bônus)

Hosni Mubarak já ensinou a todos, mas alguns não aprenderam: perder o apoio popular, tudo bem, só não pode matar gente demais no próprio país, senão perderá o apoio de seus grandes amigos do hemisfério norte.

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cotidiano, literatura

Quereria um Big Mac

– Boa noite, qual é o seu pedido? – diz o balconista mecanicamente
– Eu queria o número do Big Mac.
Queria? Não quer mais? – (seguido de risos)

Balconistas tiram sarro do meu português errado e gentil. Da próxima vez vou falar corretamente:

– Eu quereria o número do Big Mac.

“Quereria” é tão raramente usado que soa estranho. Há outros verbos na mesma situação, onde o erro fica bem mais evidente:

– Eu podia (poderia) comprar se tivesse o dinheiro.
– Eu até comia (comeria), mas estou sem fome.

O pretérito imperfeito lembra o futuro do pretérito em todos os verbos da segunda e terceira conjugação: “bebia“/”beberia” “pedia“/”pediria“. Na primeira conjugação, não há como errar: “cantava”/”cantaria”, “falava”/”falaria”, mas mesmo assim acontece: “Eu precisava falar com você” é uma expressão recorrente, mesmo quando o locutor ainda precisa dessa conversa. O verbo querer tem um particularidade: termina não apenas em er, mas em rer, fazendo o pretérito imperfeito ter a mesma terminação que o futuro do pretérito de todos os outros verbos: “queria” soa como “poderia” e “comeria“. O mesmo ocorre com “preferir”.

Para encontrar sua utilização corriqueira, googlei por “quereria”. Na primeira página, apenas um poema do Manoel Bandeira, que dará o toque pseudointelectual que faltava ao post:

O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

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