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O finado demônio de Laplace

“Uma vasta inteligência que, em determinado momento, conheça todas as forças que colocam a natureza em movimento, e todas as posições de todos os itens de que a natureza é composta, colocando em uma mesma fórmula o movimento dos maiores corpos do universo e o dos menores átomos; para essa inteligência nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seriam revelados aos seus olhos.”

Essa vasta inteligência foi carinhosamente apelidada de “demônio de Laplace“.

A primeira vez que me deparei com essa questão foi aos dezessete anos, com o pueril Mundo de Sofia. Nunca mais havia encontrado a referência, pois ficou na minha cabeça que o pensamento era de Leibniz. O determinismo sempre me assustara. Colocar todos os dados do universo no computador, num instante X, e todas as leis da física, na função F, podemos aplicar F(X) e obter o instante X+1. Algo semelhante a inversa da função pode abrir todo o passado. Não existiria então limites para o conhecimento?

Infelizmente há há muito tempo essa “vasta inteligência” é refutada. Pelo princípio da incerteza de Heseinberg, não podemos saber simultaneamente a posição e o momento (velocidade e massa) de uma partícula sem perder precisão em um deles. Mais recentemente, David Wolpert, computeiro da NASA, provou também não ser possível, utilizando argumentos que me lembram do problema da parada:
duas inteligências como essas não poderiam prever uma a outra.

É como provar de que não existe viagem no tempo: devo ficar triste ou não?

PS: no quase-original do francês fica mais pseudointelectual:

Une intelligence qui, à un instant donné, connaîtrait toutes les forces dont la nature est animée et la situation respective des êtres qui la compose embrasserait dans la même formule les mouvements des plus grands corps de l’univers et ceux du plus léger atome ; rien ne serait incertain pour elle, et l’avenir, comme le passé, serait présent à ses yeux.

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Opiniões difíceis: carros blindados e deportação

Existem opiniões difíceis de formar, e que até evitamos expressar, como o direito ao aborto, a liberação de algumas drogas e a pena de morte, mas provavelmente todos nós temos a nossa. Sinto amargura quando não consigo nem mesmo secretamente opinar sobre determinado assunto. Compartilho dois exemplos.

A Du Pont é um daqueles conglomerados recordistas de patentes, inovando a todo momento. Recentemente fez mais progressos no ramo da segurança e blindagem, sendo também o berço do kevlar.

É lugar-comum discorrer a repeito da neurose em relação a segurança, e como isso nos sensibiliza facilmente, do possível muro que se ergue dividindo a população. O excesso de grades me incomoda até ao receber o entregador de pizzas: fico acanhado com a situação. O mesmo constrangimento ocorre quando o garoto de rua levanta a camiseta e dá uma volta antes de pedir dinheiro no farol, informando de que não está armado. Difícil é traduzir essa sensação em um video, e a e a Du Pont o fez. Ele é estarrecedor: tratar da violência com extrema leveza, com direito a música amigável e assovios alegres. Lembra-me das propagandas do Activia, elevados a enésima potência. A publicidade é branca, até literalmente. Mais ainda, aborda uma espécie de “inclusão de segurança”, pois agora não só a classe alta pode ter acesso a essa (pseudo?) segurança. A propaganda me fez continuar em dúvida se a evolução da blindagem de carros é algo bom. Devo ficar feliz e correr para a concessionária ou devo me juntar aos que vão dizer que esse investimento em pesquisa fora mal destinado, e de que deveríamos procurar a raiz do problema (educação, saúde para todos, desarmar os civis, …)?

O mesmo ocorre na deportação do imigrante ilegal. Será que eu, os franceses e os alemães ainda ficariam revoltados se soubessem que o imigrante maliano molestara uma criança? Mas e se fosse apenas o roubo de um celular, ele mereceria tal tratamento? Para piorar: qual seria o crime cometido por ele que deixaria você confuso sobre o seu próprio julgamento, sem saber opinar?

E você, em qual outra situação acha difícil opinar?

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O teste do marshmallow: empreendedores e startups

Li em um blog sobre startups diversos conselhos de um jovem empreendedor, com bons pontos sobre a dificuldade no mercado de serviços. O que me incomoda é sempre encontrar esse anseio da venda precoce da empreendimento, de querer parar o que está fazendo e rapidamente começar algo novo.

Por que tão rápido? Por que uma empresa, um emprego, um livro, um sonho, não pode ser o grande achievement da sua vida? O motivo apresentado é de que “a maioria dos bons empreendedores têm DDA“. Eu diria exatamente o contrário. Poucos empreendedores de sucesso projetaram uma empresa com o intuito de vende-la ou de abandona-la rapidamente por uma outra oportunidade. Os “sócios-fundadores” de emprendimentos de sucesso costumam ter cargos executivos por muito, muito tempo. Devemos combater essa nossa ansiedade e falta de foco, não alimenta-la.

O vídeo (escandinavo?) do teste do marshmallow virou meme, mas ele não é tão meigo quanto parece. As primeiras pesquisas similares foram feitas na década de 60 e, 30 anos mais tarde, as mesmas crianças foram avaliadas em relação a QI, pontuação do SAT, sucesso pessoal e profissional. Preciso revelar qual grupo “ganhou” por uma ampla margem?

Indo além, se o seu plano é de vender sua grande ideia desde o começo, quem vai abraçar a sua causa? Quem serão as pessoas capazes de gerir o negócio quando ele precisar crescer? Em uma geração entupida de diagnósticos precoces de TDAH, e prescrições forjadas de ritalina e modafinil, o vencedor é quem consegue focar, se concentrar e se esforçar mais. Eu sinto admiração por quem sabe concluir o que começa e frustração com minhas leituras inacabadas, promessas não cumpridas e mudanças bruscas de foco.

No filme a Rede Social, Sean Parker cita o caso de Roy Raymond, o criador da rede de lojas Victoria’s Secret. Estudante de administração em Stanford, vendeu a marca que criara depois de menos de 5 anos. Os 4 milhões adquiridos virariam pó em sua nova empreitada, tornando-o mais um na campeã estatística de suicídios da Golden Gate. Fica apenas como curiosidade, já que o senhor Raymond parece ter esperado tempo suficiente para o segundo marshmallow.

Esse conceito de criar e vender startups ASAP me lembra dos livros de Seneca, em que o presente deve ser sempre o mais importante, sem focar o futuro, nem lembrar muito do passado. Realmente não adianta muito poupar um marshmallow se um desastre natural o espera antes da prometida recompensa. Devemos dosar.

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O problema do Bem

O problema do Mal é aquele dilema filosófico e religioso que soa pueril: por que o mal existe? Pergunto mais: o tal do bem existe? Quando você estende a mão para um necessitado na rua, o faz por por benevolência? Ou por interesse próprio? A gratidão do desconhecido, ou o reconhecimento do conhecido frente a sua boa ação tem valor inestimável. Sem eles continuaríamos a alimentar os pobres, fazer doações e ajudar o próximo?

Relatou a mãe de uma médica próxima à minha família, que sua filha disse: “Mãe, deixe-me estudar. Não estou fazendo isso por dinheiro ou para mostrar para alguém que eu sei, eu só quero saber cada vez mais enquanto viver“. Era a resposta para a crítica à sua carga exagerada de trabalho. Conheço a médica pessoalmente e sinto que falou honestamente. Mas não há alguma outra compensação, alguma forma de egoísmo, escondida por debaixo de toda ação altruísta? A resposta pode estar naquela coletânea de livros em que os sábios dizem encontrar todas as respostas. Isso mesmo, em Irmãos Karamázov, de Dostoiévski:

Eis a questao fundamental! É a minha questão mais torturante entre as demais. Abro os olhos e pergunto a mim mesma: aguentarias muito tempo esse caminho? E se um doente, cuja chagas lavasses, não te retrbiuísse imediatamente com a gratidão, mas, ao contrário, começasse a te torturar com caprichos, sem apreciar nem ligar para teu esforço humanitário, passasse a gritar contigo, a fazer exigências gorsseiras, até a queixar-se com algum superior…, o que farias? Teu amor continuaria ou não? Pois veja – eu mesma já conclui estremecida: se existe algo capaz de esfriar imediamente o meu amor “ativo” pela humanidade, esse algo é unicamente a ingratidão. Numa palavra, trabalho por dinheiro, exijo pagamento imediato, ou seja, que me elogiem e que amor com amor se pague. De outro modo não sou capaz de amar ninguém!

Sem a gratidão lavaríamos as chagas de outros? Talvez nem mesmo as nossas. Se ao ajudar um pedinte da rua, cuja sanidade já não podia ser verificada com precisão, você recebesse um soco no peito depois de comprar o croissant e leite que ele desejara? E depois, chocado e sem reação, com um volume grande de adrenalina no sangue, ouvisse-o vociferar de que ele é na verdade um policial árabe e mimicasse sacar um revólver da própria pele, como se ele estivesse dentro do seu rim, qual seria sua atitude? Na ausência da gratidão, na presença da ingratidão, você ofereceria a outra face, sem esperar recompensa na imortalidade?

No mesmo livro tem outra passagem que me impressiona. A mesma de onde parafraseamos como “se Deus não existe, tudo é permitido“. Ivan diz que o bem pode até existir, mas só existe pela crença na imortalidade, onde haveria gratidão ou acerto de contas:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Uma reflexão sobre a base judaico-cristã do castigo, do galardão. Em o Lobo da Estepe, Hermann Hesse mostra esse conflito interno ao enxergar uma boa ação como inócua:

Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convia, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba.

Prefiro me abster desse pensamento.

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