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Morte de Deus, fim da moral e o super-homem: Nietzsche e Dostoiévski

Na página 109 da tradução de Paulo Bezerra, é revelado o conteúdo do artigo de Ivan Karamazov:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Já na conversa com o diabo (páginas 840), este cita um outro pensamento de Ivan Karamazov (curioso observar como Dostoievski prefere apresentar os profundos pensamentos de Ivan através de outras pessoas). Aqui aparece o Homem-Deus (человеко-бог). Seria o protótipo do super-homem (Übermensch) nietzschiano?

“Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era … virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começara o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito.”

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A importância do leitor: Montaigne e Pascal

Estranhei um bofetão que Pascal dá em Montaigne em relação aos ensaios (pensamento 59/63):

“Os defeitos de Montaigne são grandes. Termos lascivos: isso não vale nada, diga o que quiser Mademoiselle de Gournay. Crédulo: gente sem olhos. Ignorante: quadratura do círculo, o mundo maior. Suas opiniões sobre o homicídio voluntário, sobre a morte. Inspira uma indiferença pela salvação sem temor e sem arrependimento. Como o seu miro não tinha em mira estimular a piedade, ele não era obrigado a isso; mas sempre é obrigado a não desviar dela. Podem-se desculpar suas atitudes um tanto livres e voluptuosas em algumas conjunturas da vida, porém não os seus sentimentos completamente pagãos em face da morte; pois é preciso renunciar a toda piedade, quando nem se quer se deseja ter uma morte cristã; ora, em todo o seu livro ele só pensa em morrer covardemente e com moleza.

Cheguei a essa passagem ao ler o artigo do Les Essais na Wikipedia. Gostei bastante dos diversos ensaios traduzidos nessa nova edição de Penguin Books, de Rosa Freire d’Aguiar. Reflexões morais sobre a vida, amor, morte, amizade (e claro, canibais!). Aliás, morte e homicídio, a questão do direito dos super homens, dão o tom existencialista que tanto aprecio e busco na literatura.

Mesmo podendo ofender a religiosidade e cristandade de Pascal, parecera violenta sua forma de esbravejar sobre a obra de Montaigne. Seria um tanto pseudointelectual. Quando mostrei essa passagem a um sábio conhecido, disse-me que recordava de algo um pouco diferente e foi buscar sua tradução de Les Pensees.

Para meu espanto, havia lá próximo um trecho onde Pascal deixa claro que o texto de Montaigne o faz refletir profundamente:

Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que encontro tudo o que nele vejo.

Como bom cidadão, editei o artigo dos ensaios na wikipedia e adicionei essa linda frase de Pascal: Ce n’est pas dans Montaigne mais dans moi que je trouve tout ce que j’y vois. A forma com que o texto nos impacta é o seu real valor.

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Tradução do poema Último Brinde de Anna Akhmatova

Eis minha primeira tentativa de uma tradução literal de um poema. É o Последний тост de Ахматова Анна (Anna Akhmatova). No original:

Я пью за разоренный дом,
За злую жизнь мою,
За одиночество вдвоем,
И за тебя я пью,—

За ложь меня предавших губ,
За мертвый холод глаз,
За то, что мир жесток и груб,
За то, что Бог не спас.

Aqui há uma tradução atribuida a Rubens Figueiredo (o tradutor que está ficando famoso com os volumosos livros de Tolstoi pela Cosas-Naify):

Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz…

Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada vêem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.

Minha fraca tradução literal (pior só google translator), sem rima nem métrica, para manter o impacto do impressionante “одиночество вдвоем”:

Eu bebo ao lar despedaçado,
À minha vida cruel,
À solidão a dois,
E a você eu bebo, –

Ao lábio que me traiu,
Ao frio mortal dos olhos (de seus olhos?),
Ao mundo, que é duro e cruel,
A Deus, que não salva.

Quanta felicidade! 🙂

Aqui há uma tradução em inglês.

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Pula, viadinho!

Mesmo com seus pais presentes na beira da piscina, sou o único a incentivar meu sobrinho, “você também consegue!”, e ele sobe graciosamente o fim da pequena escada copiando os recentes movimentos do irmãozinho.

Um pé para cima, procura o degrau com a ponta do dedão, leva a cintura para um lado quase como uma dança, “tiooo, tá me vendo?”, meneia a cabeça evitando acenar, outro degrau. Sua mão desliza e faz ranger o metal com a delicada fricção, procura pelos olhos do pai.

Quer surpreende-lo repetindo o salto do caçula, mas meu irmão fita o jornal e finge ignorar os putos que caçoam e sempre caçoaram de seu magro Rafael. Vira a página, mais um fuxico, outro comentário ali, “é
o bichinha”, e risos, e soslaios, um dedo indicador no ar, galhofa.

Rafael chega ao topo, pensa, estende o pescoço para mensurar o desafio, sem soltar nenhuma mão das alças do corrimão. Plantas dos pés arqueadas evitam a umidade e a baixa temperatura da plataforma. Os olhos dos vizinhos parecem gravitar a sunga azul do menino, e o interior paulista segue com sua merda preconceituosa.

Pega impulso, reflete, vacila, essa demora me consome, difícil esperar mais. Dá um passo rápido e hesita com um sorriso sem mostrar dentes, estou farto, impaciente, cerro minhas mãos com força uma vez, duas vezes, mas agora me é impossível… e confesso, sozinho na voz e uníssono em pensamento, num bramido: “Pula, viadinho!”.

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Dostoievski, Schopenhauer e a boa literatura

Tirei esta foto há 5 anos, em uma vitrine próxima ao túnel de travessia da Consolação. É utilizado como propaganda para o sebo que se encontrava por lá:

Essa crítica, aos autores populares e bem sucedidos em vida, não é nova. Schopenhauer possui um ensaio curto a respeito da literatura onde, além de recomendar ler duas vezes uma obra importante, ataca os autores contemporâneos, seus livros ruins e sua busca pelo dinheiro:

“They monopolise the time, money, and attention which really belong to good books and their noble aims; they are written merely with a view to making money or procuring places. They are not only useless, but they do positive harm. Nine-tenths of the whole of our present literature aims solely at taking a few shillings out of the public’s pocket, and to accomplish this, author, publisher, and reviewer have joined forces.”

E sobre o cuidado que devemos ter, para não ler esses livros “ruins”. A arte de não-ler.

“Hence, in regard to our subject, the art of not reading is highly important. This consists in not taking a book into one’s hand merely because it is interesting the great public at the time — such as political or religious pamphlets, novels, poetry, and the like, which make a noise and reach perhaps several editions in their first and last years of existence. Remember rather that the man who writes for fools always finds a large public: and only read for a limited and definite time exclusively the works of great minds, those who surpass other men of all times and countries, and whom the voice of fame points to as such. These alone really educate and instruct.

One can never read too little of bad, or too much of good books: bad books are intellectual poison; they destroy the mind. In order to read what is good one must make it a condition never to read what is bad; for life is short, and both time and strength limited.”

A conclusão vai longe, e contrapõe a fama contemporânea com a póstuma, colocando-as como mutualmente exclusivas:

“The great minds, however, which really bring the race further on its course, do not accompany it on the epicycles which it makes every time. This explains why posthumous fame is got at the expense of contemporary fame, and vice versa.

But I wish some one would attempt a tragical history of literature , showing how the greatest writers and artists have been treated during their lives by the various nations which have produced them and whose proudest possessions they are. It would show us the endless fight which the good and genuine works of all periods and countries have had to carry on against the perverse and bad. It would depict the martyrdom of almost all those who truly enlightened humanity, of almost all the great masters in every kind of art; it would show us how they, with few exceptions, were tormented without recognition, without any to share their misery, without followers; how they existed in poverty and misery whilst fame, honour, and riches fell to the lot of the worthless…”

E também em Dostoievski, no próprio Os Demônios, chamou-me atenção esta passagem que também discorre sobre autores contemporâneos:

“… todos esse nossos senhores são talentos de médio porte, que durante suas vidas costumam ser considerados quase gênios, mas quando morrem não só desaparecem da memória das pessoas quase sem deixar vestígios e meio de repente, como acontece que até em vida acabam sendo esquecidos e desprezados por todos com incrível rapidez, mal cresce a nova geração que substitui aquela em que eles atuavam. De certo modo, isso acontece subitamente entre nós, como se fosse uma mudança de decoração de teatro. Mas aqui não é absolutamente o que acontece com os Pushkins, Gogols, Molieres, Voltaires, com todos esses homens ativos que viveram para dizer sua palavra nova! Ainda é verdade que, no declínio de seus honrosos anos, esses mesmos senhores de talento de médio porte se esgotaram entre nós, e de modo habitualmente mais lamentável, sem que sequer o percebam inteiramente. Não raro, verifica-se que o escritor a quem durante muito tempo se atribuiu uma excepcional profundidade de ideias e do qual se esperava uma influência excepcional e séria sobre o movimento da sociedade, ao fim e ao cabo, revela que a sua ideiazinha básica era tão rala e pequena que ninguém sequer lamenta que ele tenha conseguido esgotar-se com tamanha brevidade. Mas os velhinhos grisalhos não notam tal coisa e se zangam. Justo ao término de sua atividade, seu amor próprio às vezes ganha proporções dignas de espanto.”

São opiniões fortes. Procuro ler as obras de autores já consagrados por um só motivo: tenho pouco tempo para ler, pouco tempo para literatura. “It would be a good thing to buy books if one could also buy the time to read them“. Tento seguir o que os mais conhecedores separaram, sabendo que dessa forma corro o risco de deixar para trás autores com quem poderia me indentificar ainda mais.

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Shakespeare e Henry James

Lendo sobre Henry James no Wikipedia, encontrei essa descrição que Edmund Wilson (!?) faz sobre seu estilo de escrita:

“One would be in a position to appreciate James better if one compared him with the dramatists of the seventeenth century—Racine and Molière, whom he resembles in form as well as in point of view, and even Shakespeare, when allowances are made for the most extreme differences in subject and form. These poets are not, like Dickens and Hardy, writers of melodrama—either humorous or pessimistic, nor secretaries of society like Balzac, nor prophets like Tolstoy: they are occupied simply with the presentation of conflicts of moral character, which they do not concern themselves about softening or averting. They do not indict society for these situations: they regard them as universal and inevitable. They do not even blame God for allowing them: they accept them as the conditions of life.

Mostrar os conflitos sem fazer julgamento moral, aceitando tudo como condições da vida. É sobre isto que gosto de ler. Traz um certo reconforto.

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Civilizando os canibais

O extermínio indígena que se procedeu nas Américas com a chegada dos colonizadores não horroriza apenas os estudiosos recentes. Por muitas vezes, encontramos exatamente o oposto. Dois textos famosos, da época dos descobrimentos, são categóricos ao expor as mazelas trazidas na tentativa de “civilizar a raça inferior”.

O ensaio Sobre os Canibais, de Montaigne, é uma reflexão sobre seu encontro com três índios tupinambás que foram trazidos a Europa. Um texto que exalta o modo de vida indígena, e compara esse estilo puro com o da sociedade da Europa:

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato (canibalismo), mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagados pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião).

Afirmam que Shakespeare lera esse texto antes de conceber A Tempestade. Na peça, o personagem-anagrama Caliban é o monstro selvagem que habita a ilha a ser conquistada. Ele é aprisionado e forçado a utilizar a língua do dominador, e também acusado de tentar estuprar sua filha. Em contraste, é exposto o lado dócil do colonizado, que recebe muito bem o futuro anfitrião.

Ambos textos são frequentemente referenciados por autores pós-colonialistas.

No fim do século 19, Jules Ferry, o primeiro defensor da escola moderna, “laica, gratuita e obrigatório”, não demonstra a mesma visão aguçada ao argumentar sobre o tratamento despendido aos indígenas:

Senhores, há um segundo ponto, um segundo conjunto de ideias que eu devo igualmente expor…: é o lado humanitário e civilizador da questão. Senhores, deve-se falar mais alto e mais verdadeiramente. Deve-se falar abertamente que as raças superiores têm um direito frente às raças inferiores. Eu repito que para as raças superiores têm um direito, pois há um dever para elas. Elas têm o dever de civilizar as raças inferiores. Esses deveres foram frequentemente ignorados na história dos séculos precedentes, e certamente quando os exploradores espanhóis introduziam a escravidão na América central, eles não cumpriam seu dever de raça superior. Mas hoje em dia, eu digo que as nações europeias conseguiram, com grandeza e honestidade, exercer desse dever superior da civilização.

Bárbaro. Difícil descobrir quem não é canibal. Posso ver esse mesmo argumento sendo usado ao “levar a democracia para os países do Magrebe e do Oriente Médio”. 500 anos depois, o colonizador ainda bate e acaricia.

Como um conterrâneo de Montaigne pudera se expressar assim, 300 anos depois dos Ensaios? Georges Clemenceau não o perdoou:

Aqui, em suas próprias palavras, a tese do sr Ferry e nós vemos o governo francês exercendo seu direito sobre as raças inferiores indo guerrear contra elas e convertendo-as, a força, para as vantagens da civilização. Raças superiores! Raças inferiores! Isso é falado com muita facilidade. Ao meu ver, eu sou menos categórico desde que eu vi sábios alemães demonstrar cientificamente que a França devia ser vencida na guerra franco-alemã, pois o francês é de uma raça inferior à alemã. Desde então, eu confesso, eu considero duas vezes antes de me voltar a um homem e a uma civilização e pronunciar: homem ou civilização inferior! …

É a genialidade da raça francesa de ter generalizado a teoria do direito e da justiça, de ter entendido o problema da civilização era eliminar a violência das relações de homens entre eles dentro de uma mesma sociedade e de fazer tudo para eliminar a violência, por um futuro que nós não conhecemos, das relações entre as nações. (…) Veja a história da conquista destes povos que vocês chamam de bárbaros e vocês verão lá a violência, todos os crimes enfurecidos, a opressão, o sangue derramado em abundância, os fracos oprimidos, tiranizados pelo vencedor! Aqui a história da sua civilização! … Quantos crimes atrozes, pavorosos foram cometidos em nome da justiça e da civilização. Eu não digo nada dos vícios que o europeu traz consigo: o alcool, o ópio que ele espalha, que ele impõe se lhe agrada. E é um sistema como esse que você tenta justificar na França, na pátria dos direitos humanos!

Eu não entendo que nós não tenhamos sido unânimes aqui em levantar-nos de uma vez só para protestar violentamente contra suas palavras. Não, não há direito de nações ditas superiores contra as nações inferiores. Existe a luta pela vida que é uma necessidade fatal, que enquanto crescemos dentro da civilização nós devemos nos mater dentro dos limites da justiça e do direito. Mas não tentemos mascarar a violência com o nome hipócrita ‘civilização’. Não falemos de direito, de dever. A conquista que você recomenda, é o abuso puro e simples da força que dá a civilização científica sobre as civilizações rudimentares para se empossar do homem, o torturar, extrair toda a força que está nele para o lucro da suposta civilização. Não é o direito, é a negação desse. Chamar isso de civilização, é juntar a violência a hipocrisia.

Touché.

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O que é preconceito? De Higienópolis a Danilo Gentili

Em um estado do sul do país, estávamos em três amigos. Um deles tinha um encontro marcado com uma garota da cidade. De posse do carro do outro amigo, fomos todos buscá-la. Depois de uma curta introduçao, resolvi quebrar o gelo:

“Poxa Fulano! Que óculos escuro horrível este aí!” – eu disse.
“É mesmo!” – respondeu o proprietário do veículo.
“É verdade, puta óculos de preto!” – ensurdeceu-nos a menina.

Não houve reação. Nenhum de nós estávamos preparados para algo assim, no século 21. Achava que isso não existisse no Brasil. Pessoalmente me senti impotente de começar qualquer argumentação. O que falar pra ela? O silêncio doía aos nossos ouvidos e nossas almas.
Não lembro quanto tempo se passou até que alguém pudesse reunir forças para abrir a boca e iniciar algum assunto banal. É como uma daquelas piores memórias, que tentam se esconder em nosso subsolo. Revejo a cena pensando em possíveis formas de “jogar tudo que penso na cara dela”. Somente muitos segundos depois, que pareceram uma infinidade, a conversa reiniciou, com qualquer outro comentário banal. Mesmo assim, minha cara-de-bunda era nítida e permaneceu por muito tempo, como a de meus outros dois amigos.

Esse é um exemplo claro e bárbaro. Não há como ficar mais explícito… talvez uma bisavó que não gostava de que seu bisavô contratasse “escurinhos” possa competir.

Refletindo esse caso, percebi que devo continuar me policiando para nunca mais utilizar expressões com as quais convivi na adolescência. É frequente ouvir, em São Paulo, que esse é um óculos “de baiano”. Trabalho com profissionais baianos que se vestem melhor que eu e de muita inteligência, como então usar um termo desses? Há mais casos horrorosos, como se referir a um trabalhador como nordestino, um porteiro como cearense. Meu colega mais inteligente da faculdade, o chouchou de la maitresse, assim como amigos da profissão, é de Fortaleza, e devo muito dos meus conhecimentos a eles.

Se você tenta intervir, poderá receber a justificativa número 1 do manual do ignorante moderno: “ah, mas são os próprios nordestinos/negros/judeus/pobres/(coloque sua minoria (maioria?) aqui) quem têm preconceito com eles mesmos”. De chorar.

Mesmo se existisse uma minoria em que todos seus participantes possuissem determinada característica: podemos, devemos, queremos explicitar uma diferença que tenha conotação negativa?

Há algumas situações mais confusas.

E se o menino fosse negro e se pintasse de branco, como Cirilo do Carrossel? Seria tão engraçadinho? E a questão da camiseta “100% negro”? O professor Kabengele Munanga discute bem essas questões específicas de negros e brancos no Brasil.

Se Shylock, de Mercador de Veneza, pode ser interpretado por Al Pacino de forma tão amigável, podemos descartar a hipótese de preconceito da peça?

E chamar um amigo de veado, para brincar com ele, é aceitável? Podemos associar a cor rosa a homossexualidade, pela piada? E se ele for um jogador de volei homossexual, pode? Devo pensar duas vezes antes de brincar da mesma forma que as gerações antigas faziam com os meninos: “ah! e você vai querer uma bonequinha de natal? só falta me falar que ganhou roupa rosa!”.

E o garoto alto e magrelo, vale ressaltar sua semelhança com uma girafa? Não seria, de alguma forma, próximo a oferecer banana ao macaco? Ou seria uma justificativa para Danilo Gentili chamar negros de macacos:

Se é engraçado piada de gay e gordo, por que não é a de preto? Porque foram escravos no passado hoje são café-com-leite no mundo do humor? É isso? Eu posso fazer a piada com gay só porque seus ancestrais nunca foram escravos? Pense bem, talvez o gay na infância também tenha sofrido abusos de alguém mais velho com o chicote.

O mesmo Danilo Gentili que faz piada do Holocausto, ultrapassando o limite do politicamente incorreto, depois do terrível incidente que da infeliz moradora de Higienópolis criadora do meme “gente diferenciada“:

Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.

Danilo Gentili não está sozinho. Rafinha Bastos que o diga.

Simples brincadeiras? Acho que todas essas expressões já tiveram sua hora, e na próxima geração serão (hão de ser!) consideradas absurdos, como hoje são algumas que nossos avós e bisavós usavam. E não é nosso objetivo sermos melhores do que antes?

Será o fim, inclusive, da piada de português?

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A miséria humana: o mineiro só é solidário no câncer

A coluna do Luiz Ponde, na folha de São Paulo, de 28 de março de 2011, intitulada “Só os neuróticos verão a Deus” (infelizmente apenas para leitores), me arrepiou. Ela começa assim:

Tenho pensando demais em dinheiro e sucesso. Não porque eu os tenha em excesso (haveria uma “quantidade justa” de dinheiro e sucesso?), mas porque, sem eles, somos afogados no sentimento da inexistência. Talvez por isso tanta conversa fiada sobre sermos honestos e desapegados quando, na realidade, em silêncio, babamos por dinheiro e sucesso. Haverá amor sem dinheiro e sucesso, ou terá razão o grandioso Nelson Rodrigues quando diz que dinheiro compra até amor verdadeiro? Aqui, ele fala a anos-luz de distância da sensibilidade infantil da classe média e de seu marketing da ética que assola o mundo.

Ponde cita Nelson Rodrigues e Fiodor Dostoievski. Mais especificamente o dilema “se Deus não existe, tudo é permitido“, conhecida paráfrase ao artigo de Ivan Karamazov. Nelson Rodrigues é invocado com a curta peça “Bonitinha, mas ordinária“. Acabei lendo para ver se gostaria tanto quanto de um livro de Dostoiévski, sem muito sucesso. O livro repete o mantra “O mineiro só é solidário no câncer“, atribuída a Otto Lara Resende. Peixoto, amigo do protagonista Edgard, tira dessa anedota o mesmo tema de Irmãos Karamazov: “Você diz que não é o mineiro, mas o próprio homem, o próprio ser humano. E se o homem é isso, tudo é permitido. Eu concordo. Sou da mesma opinião.“.

Essa curta frase alivia diversas questões morais que aparecem na trama, afinal, se somos solidários apenas por estarmos em uma situação melhor ao do colega, o que resta de altruísta? o que resta de amoral? Edgard luta contra esse vazio, esse ateísmo didático, para se mostrar diferente dos outros e de que há sim uma certa esperança.

Será mesmo que somos apaixonados pela tragédia e desgraça dos outros? Este post de Alexandre Soares nos lembra de que como somos atraídos por grandes desgraças. O cinema-pipoca, #1 box office, já não é apenas o Batman e o James Bond. Agora inclui os sucessos com pacientes terminais que perderam sua família abruptamente. Por que gosto tanto de American Beauty e Weather Man? Em Crime e Castigo, há uma passagem (não achei) em que Dostoievski fala sobre uma pequena alegria que subitamente nos atinge face a notícia de morte de um conhecido. Meu pai diz que “o humano só aparece na sua tragédia“. Na dos outros, também. É o problema do bem.

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Moby Dick ou a Baleia

Se você tem qualquer livro da Cosac Naify, percebeu o capricho que eles têm com o acabamento. O tal livro-objeto. Capas, ilustrações e tipografia invejáveis, com um espaçamento que facilita e agrada. Mas há sim um ponto em que prefiro outras editoras: as notas do editor e do tradutor. Praticamente não há notas nesse livro (a não ser as do próprio Melville e uma única nota explicativa dos tradutores). Dessa forma ficamos com ostaxas, mastros de proa, detalhes da anatomia dos cetáceos e muitos outros termos naúticos sem explicação. Algumas pausas para recorrer ao dicionário e ao wikipedia interrompem nossa longa aventura.

Ambroise Louis Garneray, Peche de la Baleine

Apenas ao terminar o livro percebi que havia um curtíssimo dicionário nas páginas finais, assim como ilustrações da aparelhagem naútica, bastante explicativas. Mesmo descobrindo antes, ficar revirando páginas e marcadores com frequência seria um grande aborrecimento.

Curioso que encontrei opiniões exatamente opostas a minha na internet. Neste post, o autor Rodrigo, que me pareceu bem erudito, aprecia a ausência das “enfadonhas e irritantes notas de rodapé“. Também elogia a acurácia da tradução literal dos muitos termos naúticos, pois a “tradução exata não serve apenas como forma de não tomar o leitor por idiota … serve, sobretudo, para que não se desvirtue o caráter excepcional que Melville dá ao seu narrador“. Eu ficaria bem contente se evitassem usar a segunda pessoal do plural, assim como Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman fazem em suas traduções de Dostoiévski. Através de notas de rodapé, eles deixam claro quando os personagens estão se tuteando ou misturando as duas segundas pessoas do plural. Também contextualizam hábitos e palavras de uma cultura que não conhecemos. E hábitos e palavras que não conhecemos permeiam Moby Dick… muito mais que no acessível Billy Budd.

Até mesmo a escolha das palavras me pareceu estranha. Maple, aquela ávore da folha que se apresenta na bandeira do Canadá, é traduzido diferentemente de bordo. Até mesmo a ostaxa parece aparecer mais frequente como ostaga, a corda que une o barco de caça ao arpão. Concordo que a abertura do livro é muito empolgante, e gosto dos capítulos técnicos sobre os cetáceos e os barcos… mas as notas de rodapé dariam uma fluência incomparável à leitura.

O post também cita “a preocupação na construção minuciosa das psicologias dos seus personagens“. Achei os personsagens, com exceção de Ahab, Starbuck e talvez Stubb, pouco desenvolvidos. Mesmo Ismhael é para mim alheio.

Ambroise Louis Garneray, Peche du Cachalot

Posso estar blasfemando, talvez hoje seja mais correto o tradutor evitar as notas de rodapé. Mas sem elas tive de gastar um tempo considerável, em especial realizar pausas, para compreender muito do livro. Com as notas, poderia saber o que se faz exatamente com o espermacete, se é possível um humano ficar preso dentro do crânio de uma baleia, descobrir mais sobre as pinturas que Melville cita e descreve em detalhes, relacionar Davy Jones com o diabo do fundo do mar ou o personagem do infantil Piratas do Caribe, além de conhecer um mínimo sobre a história da pesca e de Nuntucket. Poderia também ter me encantado mais com a aparição da lula gigante. O livro-objeto vai me servir mais como decoração, do que me ajudou na leitura.

Fico com inveja das edições altamente ilustrativas e explicativas americanas.

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