literatura

O dilema dos gêmeos e o aborto

Minha esposa teve gêmeos. Rosana e Olívia.

Acredite, isto sempre foi um sonho. A emoção de ver as pequenas univitelinas é enorme. Idênticas. Sem mesmo uma pinta no rosto para diferenciá-las com facilidade. A maternidade Santa Gerovévia fez como pedimos: macacão roseado em Rosana, esverdeado em Olívia.

Rosana e Olívia

Consegue dizer quem é quem? Nós pensávamos que sim.

Os nomes foram escolhidos muito antes do nascimento. Rosana é a primogênita. Ela já estava mais posicionada como tal dentro do útero de minha esposa. Olívia, a mais ‘verdinha’, era o nome combinado da segunda a nascer, que veio ao mundo quatro minutos depois.

Três anos se passaram até a maternidade entrar em contato. Senhor Paulo? Depois de uma auditoria em nosso hospital, percebemos que cometemos um erro. Seus bebês receberam as pulseiras trocadas. Sim, Rosana é Olívia, e Olívia é Rosana.

Dilema dos nomes dos gêmeos

Rosana já atende pelo nome. Olívia também. O que fazer? Devo destrocar os nomes de minhas filhas? Afinal, Rosana não é a primogênita, como havíamos planejado. Para crianças com essa idade, parece-me haver apenas uma resposta: é tarde demais para realizar a destroca, além de que esse detalhe já perdeu a importância. Cada uma continua com seu ‘nome falso’, sem grandes sofrimentos.

E se a maternidade fosse mais eficaz? E se ela houvesse nos notificado prontamente, apenas uma hora após nosso contato com os bebês, ainda dentro do quarto? Destrocaria os nomes? Cada uma estava com uma cor diferente. Bastaria, a partir daquele momento, começar a chamar o bebê em rosa de Olívia, e aquele em verde de Rosana, além de trocar as pulseirinhas. Para este outro caso limítrofe, a resposta é fácil: eu realizaria a troca. A primogenitice de Rosana seria respeitada e Olívia seria a caçula, conforme o estranho desejo dos pais, sem dar nó na cabeça de nenhuma criança.

A brincadeira fica mais complicada quando avançamos mais as datas, de pouco em pouco. E se a maternidade telefonasse três dias depois? Você destrocaria os nomes dos bebês? Caso afirmativo, pense na sua resposta para o caso dela ligar apenas uma semana depois. Caso negativo, imagine a possibilidade da Santa Gervévia fazer contato ainda dentro do quarto, porém dez horas depois.

Qual é o limite para mudar sua decisão?

Deve existir um X onde você se sente confortável em dizer que, mesmo sendo contactado após X dias, você trocaria os nomes dos bebês. Depois desses X dias, você não trocaria mais. Perceba que, não importando o seu X em particular, essa é uma decisão muito estranha. Por que mudar o nome das crianças em até X dias é aceitável, e depois de X+1 dias, não é aceitável? Qual é a mágica que acontece entre esses dois instantes?

Parece até que tentamos adivinhar quando os bebês ganham consciência suficiente, ou que nós temos apego o suficiente, para que seus nomes estejam tatuados nos cérebros dos pais e/ou dos filhos. Como se esse momento fosse um instante. Mudar os nomes dos filhos pode ser uma decisão pequena. O aborto não é.

A questão do aborto

Começarei também pelos extremos.

Para muitos, a tal da alma aparece no dia da concepção. Com essa visão, não deveríamos abortar. O X da questão é 0 dias. Você só pode abortar até 0 dias depois da concepção.

Para outros, o bebê, mesmo depois do parto, ainda não tem significativos sinais de consciência. Como ele não tem um ‘eu’ bem definido, também poderia ser abortado em vida. Pode parecer um raciocínio desonesto, mas infelizmente não é. Alberto Giubilini, chefão do grupo de ética de Oxford, nos faz temer esse brave new world no artigo ‘After-birth abortion: why should the baby live?’. É um texto que indico fortemente ser lido em sua totalidade, seja você pró ou anti direito de aborto. Matar bebês não seria muito diferente de abortar aos 3 meses. Legalização do infanticídio?

Muitos defensores do direito de abortar não querem ir tão longe, obviamente. Pensando em grandes filósofos, Schwarzenegger diz que o limite são 6 dias, depois disso é anti ético. De acordo com artigo aleatório da scientific american, na vigésima quarta semana o nascituro está fisicamente preparado para a consciência. Se preferir algo mais palpável, o bebê pode se reconhecer no espelho aos dezoito meses.

baby_consciousness

Não é uma questão fácil. Não tenho respostas, mas a pergunta é latente: decidir o que é a vida, quando é vida, e a partir de que momento esse ser possui os mesmos direitos que eu, que você.

Há diversos outros dilemas onde é difícil se posicionar. O espectro de possibilidade é muito amplo. Poucos optarão pelos limites mais radicais. Grande parte ficará no meio termo, apesar de alguma incoerência. Do batizado dos gêmeos ao aborto. Do vegetarianismo à salvação de beagles e ratos.

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cotidiano

Como tive um dos dias mais felizes de minha vida ou “o resgate do resgate”

Achei que um dia, para ser considerado um dos mais felizes da minha vida, deveria ser com a última sexta-feira, quando descobri que seria tio de uma menina. Ou como hoje, que saio de férias junto com Marcela, que faz aniversário. Mas o sábado passado veio para desfazer meus preconceitos contras as platitudes facebuquianas: a felicidade está na mudança abrupta de expectativas. Eis o meu relato sabatino. Ele não é curto, mas garanto que, ao término da leitura, verá como foi edificante para mim.

Despertei as 6:10 em ponto, em Brasília. Dormi apenas duas horas e já precisava ir ao aeroporto. Antes de decolar, às 8:00, liguei para meu sogro, sr Maurício, afim de saber se estava tudo preparado para o carreto. Carreto o qual transportaria geladeira, duas camas, uma mesa, um armário e cadeiras para uma pequena casa que estamos construindo na chácara. Sr Maurício disse que estava tudo confirmado, que chegariam às 8:30 e já começariam a preparar tudo. Esperávamos sair às 9:30 e estar de volta ao meio dia, no mais tardar.

Aterrissei às 9:35 em São Paulo. Enquanto pegava o táxi para casa, liguei uma segunda vez para o sr Maurício. O carreto ainda não havia chegado: sr José, o carreteiro, teve dificuldades de achar um ajudante, então estava trazendo um outro conhecido. Eu fui enfático na necessidade de mais de uma pessoa, pois conheço bem meu sogro e meu pai: sem o ajudante, os dois fariam questão de carregar boa parte do peso até o caminhão.

Eu estava com muito sono. Sr Maurício também, havia dado plantão no dia anterior. Sr José chegou, por fim, às 10:30. Pelo telefone disse que estava estacionando e que se perdera pela Rua Vergueiro. Só então subiu para buscar o primeiro móvel: uma pesada mesa de madeira. Ao abrir o elevador, conhecemos Sr José pessoalmente pela primeira vez, o estereótipo do que o paulistano chama, talvez preconceituosamente, de ‘pessoa simples’. Um pouco quieto, submisso e cordial.

Em seguida chegou um senhor de uns 65 anos, sr Manoel, mas que tinha o vigor e aparência de seus 85. Sr Manoel era, obviamente, pai do Sr Jose. Não só isso. Qual a nossa surpresa ao saber que ele seria o tal ajudante! Pronto, percebi que teria de passar o dia carregando a geladeira para evitar que pai, sogro e em especial sr Manoel esculhambassem suas colunas vertebrais.

Carregamos uma mesa, um armário e um banco. Deu trabalho. Sr Manoel, o senil ajudante, até que ajudava: bloqueava o infravermelho do sensor do elevador, mantendo-o parado no andar. A conversa começava a fluir, com assuntos relacionados ao clima, ao trabalho e à massa dos diversos objetos erguidos.

Passamos para a segunda fase: ir à casa de meu pai buscar sua antiga geladeira. Ajudamos sr José a estacionar sua pequena carreta Hyundai por perto do prédio. Ao descerem do veículo, percebemos que havia mais uma pessoa: uma menina de cerca de 7 anos. Não basta trazer seu pai para a labuta num sábado chuvoso, né?

Subimos nós 5: eu, sr Mauricio, sr José, seu pai e a garotinha. Entramos na casa dos meus pais e começou o planejamento de como seria melhor retirar a pequena geladeira. Mamãe nos deu uma geladeira grande e bem nova. Ela estava preocupada em como a levaríamos para baixo, confrontando sr José com algumas perguntas básicas. Quando houve um momento propício, papai observou que sr José não aparentava ser muito expedito (um de seus preferidos vocábulos). “Onde vocês conseguiram essa indicação?”. “Vimos num anúncio de poste em Osasco”. Como você já viu, papai estava certo.

Enquanto os outros conversavam, decidi puxar assunto com a menina, a qual supus ser filha do sr José. “Como é seu nome?”. “Nicole!”, respondeu ela com o ar tímido de criança que ainda não deu confiança ao estranho. “Nicole, que nome lindo! E você trabalhando cedinho no sábado! Cadê o papai?”. Esperei que ela erguesse o dedo em direção ao seu José. Nada. Achei que ela estivesse só com vergonha, reforcei a pergunta. “Cadê papai Nicole?”. Ela então sorriu, com a mão na boca, até dizer “Ah… eu não sei explicar direito.”. Pois é. Ela nunca conheceu o pai. Você que já acariciou a barriguinha de uma gordinha e perguntou o nome do bebê já pode dormir mais tranquilo. E sim, depois entendemos que sr José era o avô. “Avô, neta e bisavô fazem carretos em Osasco e região” daria um bom anúncio para colar nos postes de Osasco.

Descemos com camas e colchões além da cobiçada geladeira. Carregamos tudo. Para colocar a grande caixa branca dentro da carreta, foi mais trabalhoso. Claro que sr Mauricio e meu pai também precisaram fazer força, já que o viril ajudante de 65/85 anos virou café com leite. Partimos então para Osasco, onde moram meus sogros, buscar algumas cadeiras restantes antes de partir rumo à Castelo Branco. Fomos em um outro carro, junto com a minha esposa, que acabara de retornar de um curso de auto-maquiagem (sim, isso existe).

Já era uma da tarde quando minha sogra abriu a porta. Sr José ainda não havia chegado. Passaram-se 10, 15, 20 minutos, não conseguíamos contato nem no celular. De repente meu sogro recebeu um SMS do celular do Sr José e leu em voz alta. Tive de pedir para ele me mostrar a mensagem de texto pois não acreditava. No LCD do telefone lia-se “Estamos no cinema”. WTF? No intervalinho de uma geladeira e um fogão, um cineminha? Não deu tempo nem de ficar com raiva, pois logo sr José tocou a campainha, confirmando que havia apenas esbarrado numa mensagem automática de seu Android.

Quando finalmente entraram, minha sogra perguntou o que aquele vôzinho estava fazendo ali carregando peso. Tive de explicar que ele não era um avô que carregava peso, e sim um bisavô, que nem peso poderia carregar.

Fizemos alguns sanduiches para levar no caminho, afinal, deveria levar mais uns 45 minutos para chegar lá, 30 minutos para descarregar e 45 minutos para voltar. Chegaria de volta só as 3 da tarde. Já era um prejuízo grande em relação ao projeto inicial de almoçar em São Paulo. Sr José e toda sua árvore genealógica optaram por comer os sanduíches dentro do caminhão antes de partir, e Nicole para Marcela: “tia, o sanduíche de linguiça tava gostoso, mas deixei o de chocolate pra jantar porque sou ruim de comer!”. A linguiça era salame, o chocolate era nutella.

Marcela dirigia na Castelo Branco. Eu dormia e nem vi o tempo passar.

Chegamos. Agora era só descarregar e voltar pra casa. A chácara tem três platôs. Um primeiro, mais alto, para uma futura casa. O segundo, onde há a edícula que estamos construindo e a piscina. E um terceiro, gramado, para um jardim. A diferença de altura entre os platôs é considerável, são unidos por uma rampa um pouco íngrime. Falamos para sr José estacionar no primeiro platô, que descarregaríamos tudo e desceríamos com os móveis até a edícula. Ele pediu para descer ao segundo platô, para ficar mais próximo e ter menos trabalho. Desaconselhamos na hora: semanas atrás sr Maurício havia atolado o carro ao tentar subir de volta essa rampa, pois a grama torna a subida quase impossível. Ele disse que não havia problema, que a carreta tinha bastante tração e que estava acostumado. Reclamamos. Ele insistiu. Por fim, cedemos.

Se você achava que a história estava sem sal e não tão ruim, pense novamente.

Eram quase 2 horas da tarde quando começamos a descarregar. Não foi tão difícil. Nicole brincava pela grama enquanto colocávamos tudo em seu devido lugar. Bisa Manoel carregava os travesseiros mais pesados. Sr José já podia pensar nos 300 reais que receberia, o trabalho estava próximo do fim.

Todos prontos para ir embora. José, Manoel e Nicole subiram na cabine do caminhão. Comecei me assustando ao perceber que ele não dava a partirda, a bateria falhava. Na quarta tentativa, ligou. Agora só faltava subir a rampinha para ir do segundo platô para o primeiro e seguir na Castelo Branco. Saindo as 2 horas, chegaríamos as 3 como o segundo plano indicava.

Estávamos apreensivos com a subida da rampa. O caminhãozinho começou a subir os primeiros 3 metros, engatado na primeira, com facilidade. Momentos depois começaram as onomatopéias. Os pneus giravam em falso na grama e assoviavam intensamente, até patinarem e formarem pequenos buracos de grama recém-paga. Isso tudo em questão de segundos. Não contente e sem atender aos nossos gritos de ‘espera!’, sr José descia a rampinha e rapidamente acelerava, gerando mais buracos, sujeira, sons diversos e desespero. Sim, o desespero nos arrebatou muito cedo, dado nosso histórico anterior com esse declive. Já o sr José só veio a exibir uma cara de horror, medo e desesperança minutos depois, pois ainda acreditava em seu forte braço e na potente embreagem do caminhãozinho. Depois da segunda ou terceira tentativa, já sabíamos do tamanho do problema.

Tentamos tudo isso que você está sugerindo: papelão, pedaços de madeira, rezas, pegar embalo, tentar subir de segunda marcha, etc. Nicole veio pedir um copo d’água, nem isso tinhámos pra dar naquela construção. Ela tomou torneiral. Depois de mais um bom tempo, decidi ir até a portaria tentar conversar com algum responsável pelo condomínio, pra ver se poderiam ajudar. Já passávamos das 3 da tarde.

Na portaria vi um ponto de luz: o condomínio possui um trator, que ajuda até nesses casos. Liguei para a central, pedindo socorro imediato e remoção de um caminhão atolado. A mocinha me avisou que o tratorista ficava só até às 4. Estaria eu com sorte? Desligo com a central e ligo para o tratorista, com uma velocidade de digitação invejável. Ainda eram 3:40. Ao atender, contei a história acima em uns 45 segundos, e ele foi mais rápido ainda pra dizer que aquele sábado ele saiu mais cedo e estava em Sorocaba. “Condomínio excelente com auxílio tratorista, mas não aos sábados”, daria uma boa propaganda também.

Liguei para Marcela para avisar que não conseguiria socorro, e uma nova boa notícia: Wagner, nosso pedreiro, passou por lá para resolver umas coisas e viu a nossa situação complicada. Ele falou que iria encontrar um amigo para ver se poderia ajudar. Saiu com a moto. Quando eu cheguei, ele não estava mais lá. Nicole, a ruim de comer, já estava devorando o pullman com nutella e brincando com Marcela (“tia, só vou comer metade”). Nicole quer ser “veterinária, bióloga, bióloga marinha e ter um criadouro de borboletas”. Certo Nicole, mas antes você precisa estudar, e antes disso precisa voltar pra casa. De preferência hoje.

Sr José já estava muito quieto, talvez com um pouco de vergonha. Eu estava com uma mistura de raiva e medo. Medo porque começava a escurecer, já eram quase 5 horas da tarde. Nicole e Marcela regavam as plantas. Todos esperávamos pela volta de Wagner. Na minha cabeça eu pensava em como faríamos no caso de não conseguir retirar o caminhão naquele dia. Na verdade, já pensava nisso fazia um bom tempo, mas queria fingir que não. Voltaria com todos para Osasco, 6 num carro, para só na segunda feira ligar para o tratorista sorocabano? Dormir no carro? Ligar pra polícia? Em um momento de profunda agonia, sr Maurício deu a ideia de ligarmos para o seguro do carro e falar que estávamos atolados. Ele só não pensou em como explicar, quando o guincho chegasse, que aquele carro era um transformers-caminhão. Sr Manoel continuava sendo facilmente substituído por um cone. Marcela, ainda toda maquiada, fazia cara de choro, gerando um curioso contraste. A situação era tão ruim que claro que eu tirei um instagram, onde você pode ver Nicole pendurada na Marcela, meu sogro preocupado e sr José em mais uma de suas tentativas inócuas:

Bisa Manoel não estava na foto. Creio que ele estava ajudando a carregar alguns copos. De plástico.

5:30. Wagner chegou de moto, disse que o amigo estava vindo ajudar. Torcia para o amigo dele não ser alguém de 85 anos. Chegaram. Uma caminhonete enorme, muito maior do que você está pensando, com um tal de Willian dirigindo, dizendo que estava indo descarregar e então dava pra dar uma ajuda nesse meio tempo. Descarregar o que, se o caminhão era aberto? Estava escuro e demorei para perceber a caçamba enorme, com entulhos e muita sujeira.

Sim, nosso resgate era, basicamente, um caminhão de lixo. Mas pra gente parecia um trio elétrico, de tanta alegria que nos trouxe.

Willian disse que seria fácil. Sr José pegou as cordas da geladeira e amarrou seu carreto. Willian desceu de ré, bem devagar, até o começo da rampa. O caminhão era tão grande que derrubou um dos mourões. Marcela gritou alguma obviedade do tipo: “não vai descer muito se não vai atolar também”. Impossível! Um daqueles caminhões de lixo que usa rodas duplas era tudo o que precisávamos. Amarramos a outra ponta.

Primeira tentativa. Willian começa a puxar o carreto de sr José e a corda estoura. Rapidamente conseguimos mais cordas para dar uma firme sustentação.

A segunda tentativa é a que demonstrou a sapiência de Marcela. Ao puxar um pouquinho, o pesado caminhão de Willian não girava mais as rodas, mas também não patinava! Atolou. Sim, dois caminhões atolados. E atolou de uma maneira esquisita, no começo da rampa, onde o declive é mínimo! Eu estava atônito. Pensei em ligar pro meu pai e pra minha mãe e pedir colo. Apenas Willian não estava nervoso. Claro, ele estava nessa lama há apenas 20 minutos.

Quando consegui colocar meus pensamentos no lugar, disse: vamos salvar o caminhão grande e depois tratamos do pequeno. Diminuir o prejuízo. Mesmo sem as cordas amarradas o gigante não se movia. Mais tentativas, mais tempo, mais tensão.

Willian disse que areia o ajudaria a desatolar, colocando sob os pneus, para dar atrito. Wagner foi ajudá-lo. Eu já estava acreditando mais em mandinga. Mas eu ainda não estava desesperado. Ainda.

O desespero chegou no momento que percebi onde estava o nosso carro e onde estava o caminhão-caçamba. O gigantão BLOQUEAVA A PASSAGEM DO NOSSO CARRO, mesmo estando no primeiro platô!! Tipo, 3 carros chafurdados na lama. Todos os três! Nem mesmo o plano Z de levar neta, vô e bisavô pra casa estava descartado. O *melhor* plano agora era dormir sem água, sem luz e ao relento, na edícula em construção. Junto com toda a família de Sr José, e talvez com Willian e companhia.

Não poderia ficar pior, poderia?

De repente ouço buzinas. Um carro Honda se aproximando. Wagner disse que eram uns amigos, ele os havia chamado quando percebeu que o grandão também atolou. Willian gritou: “Olhaí, chegou O RESGATE DO RESGATE”. Pois é. Estávamos salvos-salvos com o resgate-do-resgate.

Mas, no *memso* momento em que esse carro estacionava, Willian conseguiu fazer o monstrão desatolar, saindo de segunda marcha, por cima da terra que já estava toda arenosa. Meu grau de felicidade mudou bruscamente. Fiquei muito animado. Querendo ou não, Willian havia desatolado dois carros: o meu e o dele. Só faltaria o carreto do sr José. Mas esse último, se dormisse na chácara, já era lucro!

Willian e Wagner decidiram tentar o mesmo truque com o carreto: jogar areia debaixo de todos os pneus. Bastante areia, em todas as direções. Em menos de 3 minutos sr José já estava fazendo mais uma tentativa e…. com sucesso! Subiu com extrema facilidade. Não acreditava em meus próprios olhos. Comecei a dar saltos e socar o ar, como se fosse o Pelé fazendo um gol, e gritava ‘Yeahhh’, pedindo para Marcela e sr Mauricio me acompanharem nos pulos! Eles não gritaram, nem pularam, mas acho que compartilharam de minha euforia. Falei bem alto “é o dia mais feliz da minha vida!”.

Nesse conto, escrevi 70 parágrafos ladeira abaixo e os dois últimos a redenção. Eis a fóruma da felicidade.

Paguei os 300 ao sr José, perguntei ao Willian quanto lhe devia. “Só 50 da gasolina!”. Deixei 65 reais. Deixaria o quanto tivesse na carteira, mas isso era tudo. “Obrigado patrão, lembre-se da gente quando precisar levar entulho”. Sim Willian, lembrar-me-ei *sempre* de você.

Já estava escuro quando saímos rumo a São Paulo. Ainda paramos no Rei da Pamonha. Vencemos. He-man poderia dar uma lição de moral com tudo isso.

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literatura

Adverbialização do Adjetivo

Eu só fiz isso” versus “Eu somente fiz isso“.

Estou falando sério” versus “Estou falando seriamente“.

O trem chegou atrasado” versus “O trem chegou atrasadamente“.

O adjetivo faz, muitas vezes, o papel do advérbio, modificando o próprio verbo. Há um caso famoso na TV brasileira:

A cerveja que desce redondo“. A cerveja não deveria descer redonda? Não, pois nesse caso é uma adverbialização. A cerveja desce, mais precisamente, redondamente.

Procurei e vi que a coisa é séria. Há estudos sobre o assunto: “Gramaticalização de advérbios a partir de adjetivos: um estudo sobre os adjetivos adverbializados“, de Mariana Gonçalves Barbosa.

Língua complicada…

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literatura

Goethe e uma definição de grande amizade

“… sua convivência com Wilhelm era uma discordância contínua, que, no entanto, e por isso mesmo, contribuía para solidificar mais seu afeto, pois, a despeito de suas diferentes maneiras de pensar, cada qual auferia vantagens do outro. Werner se gabava de haver posto rédeas e freios ao excelente, embora por vezes exaltado, espírito de Wilhelm, e este experimentava com frequencia um triunfo grandioso quando conseguia arrastar para dentro de sua efervescência o circunspecto amigo. E assim se exercitavam reciprocamente, estavam habituados a se ver todos os dias, e poder-se-ia mesmo dizer que a impossibilidade de se compreenderem aumentava o desejo dos encontros e discussões mútuas. Mas, no fundo, os dois, que eram boas pessoas, caminhavam lado a lado, rumo a um único objetivo, e jamais puderam compreender por que afinal nenhum deles era capaz de reduzir o outro a seu próprio modo de pensar.”

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

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literatura

Existencialismo, Humanismo e Absurdismo

‘Existencialismo é um humanismo’ foi menos traumático do que esperava. Sartre utiliza uma linguagem simples, sem milhares de referências.

Não fiz a tradução livre para não correr o risco de cometer erros graves. Seguem passagens que, para mim, remetem fortemente a leituras recentes que fiz:

“Acune morale générale ne peut vous indiquer ce qu’il y a à faire; il n’y a pas de signe dans le monde“, me faz lembrar a discussão da moral em Além do bem e do mal.

“Et, par ailleurs, dire que nous inventons les valeurs ne signifie pas autre chose que ceci: la vie n’a pas de sens, a priori (…) mais c’est à vous de lui donner un sens, et la valeur n’est pas d’autre chose que ce sens que vous choisissez.”. Ao mesmo tempo que se lança para o absurdismo do Camus, tem uma solução bem diferente. Camus afirma que você não deve dar sentido para a vida, pois não há. Seria um suicídio filosófico, termo que utiliza em o Mito de Sisifo.

“La seule chose qui permet à l’homme de vivre, c’est l’acte”. Aqui é fácil. Aparece muito em Memórias do Subsolo e Crime e Castigo. O homem de ação versus o contemplador. Em Memórias do Subsolo, o heroi afirma que não age pois sabe que mesmo com o resultado da ação, não chegará a nada.

“C’est en poursuivant des buts transcendants qu’il (l’homme) peut exister”. Soa para mim Zaratustra: “What is great in man is that he is a bridge and not a goal”.

É sempre fácil encaixar as últimas leituras que fazemos. Mesmo Sartre desprezando Nietzsche. Preciso tomar mais cuidado com a subjetividade da leitura.

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filmes, religião

A vontade de acreditar em Deus: A Vida de Pi, Dostoievski e Camus

Não é a toa que o jovem Pi aparece lendo Dostoievski e Camus em ‘As aventuras de Pi’.

A grande cena do filme é quando o Pi confronta o escritor, para que ele decida qual a história era melhor: a trágica ou a fábula. No livro, a discussão é feita com os dois japoneses da seguradora. Coloquei o primeiro parágrafo do filme e o restante do livro:

Pi Patel: “I told you two stories that account for the 227 days in between. Neither explain the sinking of the Tsimtsum. Neither make a factual difference to you. You cannot prove which story is true and which is not. You must take my word for it. In both stories the ship sinks, my entire family dies, and I suffer. So tell me, since it makes no factual difference to you and you can’t prove the question either way, which story do you prefer? Which is the better story?”

Mr. Okamoto: ‘That’s an interesting question’
Mr. Chiba: ‘The story with animals.’
Mr. Okamoto: ‘Yes. The story with animals is the better story.’
Pi Patel: ‘Thank you. And so it goes with God.’

A conclusão de Pi é simples: se as duas histórias tem o mesmo resultado, e não há como provar nem uma, nem outra, melhor acreditar em Deus.


Os filósofos que alimentaram Pi na adolescência tem pontos que eu considero a favor e contra.

Em Os Demônios, Dostoievski põe na boca de Chatov, para Stravogin: “Não foi você mesmo que me disse que, se lhe provassem matematicamente que a verdade estava fora de Cristo, você aceitaria melhor ficar com Cristo do que com a verdade?“. É basicamente a mesma questão e exatamente a mesma resposta de Pi!

Nas notas de rodapé da edição da editora 34, há a ligação com o diário de Dostoievski, onde ele diz: “Esse símbolo é muito simples: acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito que Cristo, e não só não há como eu ainda afirmo com um amor cioso que não pode haver. Além disso, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, melhor para mim seria querer ficar com Cristo que com a verdade.”

Camus faz diferente. Em o Mito de Sísifo, ele apresenta três formas de encarar a vida: o suicídio, encontrar um sentido pra vida ou encarar o absurdo que é viver. Encontrar o sentido da vida é divido em dois, mas encarado da mesma forma: acreditar em Deus ou dar um objetivo para você, como “ajudar os pobres”, “defender os animais”, etc. Ele chama ambas as opções de suicídio filosófico, os dois são o salto para a fé (leap of faith), para acalmar corações. Camus renega todos esses tipos de suicídio e vai concluir que você deve viver encarando a vida de frente, com todo o absurdo que é o existir, com todas as contradições. Viver a revolta. Em outras palavras, não vale a pena ficar com a história mais bela…

E, trazendo para um contexto moderno, podemos ver essa entrevista do físico e “neo-ateístas” Lawrence Krauss: “…prefiro pensar em mim não como um ateu, e sim como um antiteísta. Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista… Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante.”

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cotidiano

A palavra ‘sim’ em português

Tenho impressão que isso é forte no país inteiro: basicamente, não utilizamos mais a palavra sim.

Repare:

“Não entendi, aí você pegou a Av. Paulista?”
“Isso!”

“Não entendi, aí você pegou a Av. Paulista?”
“É!”

“Não entendi, aí você pegou a Av. Paulista?”
“Peguei!”

Pode substituir a pergunta por o que você preferir. “Você quer chocolate?”. “Quero”. “É” e “Isso” também aparecem nesse caso, em especial se a conversa já estava em andamento, ou se a pergunta foi feita apenas para confirmar um pensamento. Situações exatamente onde “Sim” deveria se encaixar.

Uma versão em que o sim aparece, mas não isoladamente, é esta: “Você quer chocolate?”. “Quero sim”.

Mas o “Sim”, isolado, soa bastante não familiar. Diferente do “Não”, que aparece o tempo todo.

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literatura

Como nasceu a literatura?

Nabokov, no livro Lições de literatura, diz que “Great novels are above all great fairy tales….Literature does not tell the truth but makes it up. It is said that literature was born with the fable of the boy crying, ‘Wolf! Wolf!’ as he was being chased by the animal. This was not the birth of literature; it happened instead the day the lad cried ‘Wolf!’ and the tricked hunters saw no wolf….the magic of art is manifested in the dream about the wolf, in the shadow of the invented wolf.“. Em russo aqui. Em inglês. A literatura nasceu quando o homem aprendeu a mentir, a criar, a inventar.

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cotidiano

Você está aqui! No pálido ponto azul. E estamos lá, em Marte.

A Curiosity pousar em Marte eleva a moral não só dos americanos, mas a de todos nós terráqueos. É como receber as notícias das primeiras viagens para a América e dos encontros com os índios em ~1500, só que, infelizmente, sem os índios.

Separei 3 fotos que mostram o planeta Terra. Repare o tamanho do nosso importante planeta, de 40 mil km de circunferência no equador.

Esta primeira é de autoria da rover Spirit (aquela enviada em 2004, junto com a sua gêmea, a Opportuniy). Tirada em próprio solo marciano. Olha você aí!

Cuidado que há imagens fake, geradas pelos programas de posicionamento das estrelas.

Nesta foto você pode ver a Terra. Mas esse ponto não é a Terra, é Júpiter! Clique nela para poder procurar a nossa casa, vista pela sonda Mars Global Surveyor.

Nesta última foto podemos ver um ponto muito pequeno. É a terra, vista de fora do sistema solar, pela Voyager 1 em 1990, a 6 bilhões de kilometros daqui. A imagem foi batizada de pálido ponto azul por motivos óbvios.

Por que estou animado? Pois neste instante temos um rover que pesa duas toneladas, com um laboratório científico, armado com um laser para destruir rochas, em Marte. Somos nós os alienígenas com lasers desintegradores. Aposto, creio e quero que a Curiosity encontre sinais de (condições de) vida no passado marciano.

Para terminar, fique com alguns dos parágrafos inciais do livro Pálido Ponto Azul, de Carl Sagan, com legendas em português. Um livro que deve ser lido para você pensar melhor o lugar que ocupa no mundo.

“Consider again that dot. That’s here. That’s home. That’s us. On it everyone you love, everyone you know, everyone you ever heard of, every human being who ever was, lived out their lives. The aggregate of our joy and suffering, thousands of confident religions, ideologies, and economic doctrines, every hunter and forager, every hero and coward, every creator and destroyer of civilization, every king and peasant, every young couple in love, every mother and father, hopeful child, inventor and explorer, every teacher of morals, every corrupt politician, every “superstar”, every “supreme leader”, every saint and sinner in the history of our species lived there – on a mote of dust suspended in a sunbeam.
The Earth is a very small stage in a vast cosmic arena. Think of the rivers of blood spilled by all those generals and emperors so that, in glory and triumph, they could become the momentary masters of a fraction of a dot. Think of the endless cruelties visited by the inhabitants of one corner of this pixel on the scarcely distinguishable inhabitants of some other corner, how frequent their misunderstandings, how eager they are to kill one another, how fervent their hatreds.
Our posturings, our imagined self-importance, the delusion that we have some privileged position in the Universe, are challenged by this point of pale light. Our planet is a lonely speck in the great enveloping cosmic dark. In our obscurity, in all this vastness, there is no hint that help will come from elsewhere to save us from ourselves.
The Earth is the only world known so far to harbor life. There is nowhere else, at least in the near future, to which our species could migrate. Visit, yes. Settle, not yet. Like it or not, for the moment the Earth is where we make our stand.
It has been said that astronomy is a humbling and character-building experience. There is perhaps no better demonstration of the folly of human conceits than this distant image of our tiny world. To me, it underscores our responsibility to deal more kindly with one another, and to preserve and cherish the pale blue dot, the only home we’ve ever known.”

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