literatura

Moby Dick ou a Baleia

Se você tem qualquer livro da Cosac Naify, percebeu o capricho que eles têm com o acabamento. O tal livro-objeto. Capas, ilustrações e tipografia invejáveis, com um espaçamento que facilita e agrada. Mas há sim um ponto em que prefiro outras editoras: as notas do editor e do tradutor. Praticamente não há notas nesse livro (a não ser as do próprio Melville e uma única nota explicativa dos tradutores). Dessa forma ficamos com ostaxas, mastros de proa, detalhes da anatomia dos cetáceos e muitos outros termos naúticos sem explicação. Algumas pausas para recorrer ao dicionário e ao wikipedia interrompem nossa longa aventura.

Ambroise Louis Garneray, Peche de la Baleine

Apenas ao terminar o livro percebi que havia um curtíssimo dicionário nas páginas finais, assim como ilustrações da aparelhagem naútica, bastante explicativas. Mesmo descobrindo antes, ficar revirando páginas e marcadores com frequência seria um grande aborrecimento.

Curioso que encontrei opiniões exatamente opostas a minha na internet. Neste post, o autor Rodrigo, que me pareceu bem erudito, aprecia a ausência das “enfadonhas e irritantes notas de rodapé“. Também elogia a acurácia da tradução literal dos muitos termos naúticos, pois a “tradução exata não serve apenas como forma de não tomar o leitor por idiota … serve, sobretudo, para que não se desvirtue o caráter excepcional que Melville dá ao seu narrador“. Eu ficaria bem contente se evitassem usar a segunda pessoal do plural, assim como Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman fazem em suas traduções de Dostoiévski. Através de notas de rodapé, eles deixam claro quando os personagens estão se tuteando ou misturando as duas segundas pessoas do plural. Também contextualizam hábitos e palavras de uma cultura que não conhecemos. E hábitos e palavras que não conhecemos permeiam Moby Dick… muito mais que no acessível Billy Budd.

Até mesmo a escolha das palavras me pareceu estranha. Maple, aquela ávore da folha que se apresenta na bandeira do Canadá, é traduzido diferentemente de bordo. Até mesmo a ostaxa parece aparecer mais frequente como ostaga, a corda que une o barco de caça ao arpão. Concordo que a abertura do livro é muito empolgante, e gosto dos capítulos técnicos sobre os cetáceos e os barcos… mas as notas de rodapé dariam uma fluência incomparável à leitura.

O post também cita “a preocupação na construção minuciosa das psicologias dos seus personagens“. Achei os personsagens, com exceção de Ahab, Starbuck e talvez Stubb, pouco desenvolvidos. Mesmo Ismhael é para mim alheio.

Ambroise Louis Garneray, Peche du Cachalot

Posso estar blasfemando, talvez hoje seja mais correto o tradutor evitar as notas de rodapé. Mas sem elas tive de gastar um tempo considerável, em especial realizar pausas, para compreender muito do livro. Com as notas, poderia saber o que se faz exatamente com o espermacete, se é possível um humano ficar preso dentro do crânio de uma baleia, descobrir mais sobre as pinturas que Melville cita e descreve em detalhes, relacionar Davy Jones com o diabo do fundo do mar ou o personagem do infantil Piratas do Caribe, além de conhecer um mínimo sobre a história da pesca e de Nuntucket. Poderia também ter me encantado mais com a aparição da lula gigante. O livro-objeto vai me servir mais como decoração, do que me ajudou na leitura.

Fico com inveja das edições altamente ilustrativas e explicativas americanas.

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cotidiano

Realengo: culpa do indivíduo ou da sociedade?

Recebi um email de Antonio Afonso, amigo de meus pais. Nele continha um link para esse post que fala sobre a parcela de culpa da sociedade no massacre. Difícil ler, afinal, quantos garotos não foram hostilizados e, mesmo alguns doentes, nunca mataram uma borboleta? Ele não tinha possibilidade de escolha, nenhuma individualidade?

Como um óbvio fã de Dostoiévski (como se algum pseudointelectual não fosse, exceto Nabokov), o dilema me lembra de um dos sermões de mestre Zózima, onde afirmava que todos somos responsáveis por tudo. Monstruoso pensar que existe uma parcela de culpa nossa?

Um post relacionado cita outro caso de massacre estudantil, o de Cho Seung-hui na Virginia Tech. Diz que o motivo “seguramente não foi porque é um “monstro calculista”, como berrou em manchete irresponsável O Globo, sugerindo que a tragédia teria causas individuais e não sociais.“. Seguindo esse raciocínio, fico com medo de que tirem a mesma conclusão para genocidas que governaram diversos países e comandaram guerras e extermínios étnicos. O artigo termina com “Cho não é um monstro. Monstruosa e doente é a sociedade que o produziu, presidida por George Bush, a quem O Globo não chama de “monstro”, embora seja responsável por mais mortes do que todos os assassinos em massa na história dos Estados Unidos” … aposto que alguém poderia modelar uma explicação antropológica para Bush, mostrando que ele não teve escolhas, e a sociedade capitalista é a culpada.

O pai de alguma das crianças vai conseguir perdoa-lo, mesmo considerando-o doente e acreditando que uma parcela da culpa seja da sociedade? Não sei, mas se ele estivesse vivo, seria um forte candidato a terminar como o antagonista de O segredo de seus olhos.

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literatura

O que é ser pseudointelectual?

Já vi por aí essa citação como definição. Aforismo 173, A Ciência Gaia. Só poderia ser Nietzsche, o mais citado entre os pseudointelectuais:

Ser profundo e parecer profundo. – Quem sabe que é profundo busca clareza; quem deseja parecer profundo para a multidão, procura ser obscuro. Pois a multidão toma por profundo aquilo cujo fundo não vê: ela é medrosa, hesita em entrar na água.

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Voltando pra casa

Durante o ano de 2009, toda vez que pegava um avião torcia para que passasse a chamada da TAM do banzo cearense:

Emocionante.

Essa incessante busca pela própria identidade pode acabar dentro de nosso próprio lar. Parece que eu me encaixo aqui. Existem outros casos, e admiro a coragem e a felicidade de quem se encontrou muito longe de sua família, de seu país. Salvo quem viajou para fugir, em vez de se encontrar.

Essa chamada da TAM me remete a alguns filmes do Sam Mendes, o diretor de Beleza Americana. Em Away We Go, um casal tentando encontrar o melhor local para construir sua família. Já em Revolutionary Road, o casal terminal em seu antigo lar, mas antes passando por muitos sonhos que serão quebrados. Sonhos que parecem muito com os de nossa juventude: viver de pouco, como em Walden, e focado na família, como em Felicidade Conjugal, inspirados por Into the Wild.

Também me lembra do mesmo Tejo de Fernando Pessoa, e o peso que ganha o rio que passa próximo ao seu lar. Já havia blogado sobre esse poema anteriormente.

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filmes, literatura

Poesia: aprendendo a olhar

Tenho dificuldades com poesia. Entre ela e a prosa, fico com a mais fácil.

Assisti o longo e às vezes entediante filme sul coreano Poesia. Lembro que a resenha de algum colunista da Folha mencionava com especial atenção a cena da sala de aula, quando a protagonista recebe a tarefa de observar bem uma maçã. O professor decidira passar essa lição, pois considerava que “a poesia é ver melhor“. Ver melhor, como a cena acima, de Beleza Americana, que agora ganha um pouco da minha admiração. Antes, considerava essa como a pior parte desse magnífico filme.

Dias depois me deparei com o poema A Arte de ser Feliz, de Cecilia Meireles. Um texto direto e simples, e que senti passar uma mensagem muito parecida a dos dois filmes:

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Talvez seja esse o segredo, enxergar a beleza do comum, do ordinário? Parece que esse também era o segredo do Tejo de Fernando Pessoa, que sempre estava diante de sua janela, de sua aldeia:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Será que isso é poesia? Ou é apenas mais um carpediem “use filtro solar”?

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cotidiano

O amanhã e a manhã

Amanhã“, formada de “a+manhã“. Sua etmologia parece ser de “ad maneana“, onde mane/a/na também pode ser usado como manhã.

O amanhã me trouxe muitas surpresas. Era noite de festa. Um aniversário talvez. Eu devia ter 10 anos quando meu primo Claúdio, à meia noite e meia, demonstrava seu conhecimento sobre meridianos, mesmo 1 ano mais novo:
– Já é sexta feira.

Como poderia ser sexta-feira? Era quinta-feira, tinhamos acabado de jantar e eu ainda não havia dormido. Fiquei indignado. Cláudio então me explicou que o término de um dia não está relacionado ao ato de dormir. Curioso pensar que todos passamos por esse aprendizado, de que o “amanhã” não é dormir “até a manhã seguinte“. Lembra-se de como era ver o relógio passar das 11:59 para as 12:00? Encanto pueril.

Em o Mercador de Veneza, vi que o inglês shakesperiano utiliza “good morrow“, e daí temos o “to-morrow“. Em russo a brincadeira é à avessa: “vetchera” é ontem, e “vetcher” é noite. Procurei rapidamente em outras linguas, mas não achei a relação. Aposto que o português, o russo e o inglês não são as únicas.

Tento ir mais longe: quando será que tivemos os primeiros conceitos do amanhã? Quando criança, nada havia a ser feito amanhã, só existia o hoje e o agora. Creio que o amanhã só surja junto com as primeiras responsabilidades, as primeiras lições de casa, a expectativa para a chegada do natal. Parece ser um pouco antes da pré-adolescência. Deve haver estudos sobre isso.

Na infância reinava a falta de preocupação com o amanhã. Bom? Talvez. Mas melhor agora, que tenho o dobro, podendo ansiar pelo amanhã, além de gozar o hoje.

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cotidiano

Kadafi e seus antigos amigos

Hoje, começaram os ataques a Líbia, para evitar que Kadafi… faça o que mesmo? Ele já não era nosso amigo? Vejamos:

Kadafi e Obama

Kadafi e Tony Blair

Kadafi e Berlusconi

Kadafi e Sarcozy

Kadafi e Lula (and Evo Morales de bônus)

Hosni Mubarak já ensinou a todos, mas alguns não aprenderam: perder o apoio popular, tudo bem, só não pode matar gente demais no próprio país, senão perderá o apoio de seus grandes amigos do hemisfério norte.

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cotidiano, literatura

Quereria um Big Mac

– Boa noite, qual é o seu pedido? – diz o balconista mecanicamente
– Eu queria o número do Big Mac.
Queria? Não quer mais? – (seguido de risos)

Balconistas tiram sarro do meu português errado e gentil. Da próxima vez vou falar corretamente:

– Eu quereria o número do Big Mac.

“Quereria” é tão raramente usado que soa estranho. Há outros verbos na mesma situação, onde o erro fica bem mais evidente:

– Eu podia (poderia) comprar se tivesse o dinheiro.
– Eu até comia (comeria), mas estou sem fome.

O pretérito imperfeito lembra o futuro do pretérito em todos os verbos da segunda e terceira conjugação: “bebia“/”beberia” “pedia“/”pediria“. Na primeira conjugação, não há como errar: “cantava”/”cantaria”, “falava”/”falaria”, mas mesmo assim acontece: “Eu precisava falar com você” é uma expressão recorrente, mesmo quando o locutor ainda precisa dessa conversa. O verbo querer tem um particularidade: termina não apenas em er, mas em rer, fazendo o pretérito imperfeito ter a mesma terminação que o futuro do pretérito de todos os outros verbos: “queria” soa como “poderia” e “comeria“. O mesmo ocorre com “preferir”.

Para encontrar sua utilização corriqueira, googlei por “quereria”. Na primeira página, apenas um poema do Manoel Bandeira, que dará o toque pseudointelectual que faltava ao post:

O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

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cotidiano, programação

O finado demônio de Laplace

“Uma vasta inteligência que, em determinado momento, conheça todas as forças que colocam a natureza em movimento, e todas as posições de todos os itens de que a natureza é composta, colocando em uma mesma fórmula o movimento dos maiores corpos do universo e o dos menores átomos; para essa inteligência nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seriam revelados aos seus olhos.”

Essa vasta inteligência foi carinhosamente apelidada de “demônio de Laplace“.

A primeira vez que me deparei com essa questão foi aos dezessete anos, com o pueril Mundo de Sofia. Nunca mais havia encontrado a referência, pois ficou na minha cabeça que o pensamento era de Leibniz. O determinismo sempre me assustara. Colocar todos os dados do universo no computador, num instante X, e todas as leis da física, na função F, podemos aplicar F(X) e obter o instante X+1. Algo semelhante a inversa da função pode abrir todo o passado. Não existiria então limites para o conhecimento?

Infelizmente há há muito tempo essa “vasta inteligência” é refutada. Pelo princípio da incerteza de Heseinberg, não podemos saber simultaneamente a posição e o momento (velocidade e massa) de uma partícula sem perder precisão em um deles. Mais recentemente, David Wolpert, computeiro da NASA, provou também não ser possível, utilizando argumentos que me lembram do problema da parada:
duas inteligências como essas não poderiam prever uma a outra.

É como provar de que não existe viagem no tempo: devo ficar triste ou não?

PS: no quase-original do francês fica mais pseudointelectual:

Une intelligence qui, à un instant donné, connaîtrait toutes les forces dont la nature est animée et la situation respective des êtres qui la compose embrasserait dans la même formule les mouvements des plus grands corps de l’univers et ceux du plus léger atome ; rien ne serait incertain pour elle, et l’avenir, comme le passé, serait présent à ses yeux.

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