literatura, são paulo

A produção teatral de Dostoiévski

Dostoievski Não há. Ele não escreveu nenhuma peça. Aqui no Brasil, depois da primeira grande tradução de Paulo Bezerra pela editora 34, Crime Castigo, Dostoiévski é o maior sucesso de releitura que eu possa imaginar. Isso trouxe diversas adaptações para os palcos brasileiros. Não sou um frequentador de teatro, mas dada a paixão pelo escritor eu assisti a algumas delas.

A primeira encenação foi a de Sonho de Um Homem Ridículo, no teatro Ágora, com Celso Frateschi. O ator e diretor parece ser realmente um fã. O texto, apesar de ter o estilo de monólogo de que eu gosto, não me empolga. A peça foi cansativa, mesmo sendo curta. Quem conhece o estabelecimento sabe como lá às vezes fica muito quente, o que creio ter atrapalhado bastante. Mas Celso não iria parar por aí…

Depois teve a encenação do meu livro favorito, Memórias do Subsolo. A peça é extremamente fiel ao texto e eu podia reconhecer diversas das frases que me marcaram muito, aquelas que a gente circula com lápis:

Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.

É o livro que deixa a todos inquietos: elogia os homens de ação, e também os ridiculariza, denunciando a inutilidade de tentar fazer algo frente a nossa insignificância:

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui definido positivamente; haveria o que dizer de mim. “Preguiçoso!” realmente é um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me respeitar incessantemente.

A atriz Mika Lins foi excelente, sem o que eu consideraria exageros teatrais de interpretação, e a peça foi um sucesso, reestreiando por mais de uma vez.

Celso Frateschi dirigiu e atuou em mais uma peça, mais um monólogo, no teatro Ágora. Extraiu o texto mais extraído de Dostoiévski: o Grande Inquisidor, de dentro de Irmãos Karamázov. Não tem como não ficar perplexo com os ataques de um inquisidor espanhol ao encontrar Jesus reencarnado. Acusa-o de vir atrapalhar a ordem já estabelecida:

Eu te digo que o homem não tem uma preocupação mais angustiante do que encontrar a quem entregar depressa aquela dádiva da liberdade com que esse ser infeliz nasce. Mas só domina a liberdade dos homens aquele que tranquiliza a sua consicência.

Será que não pensaste que ele (o Homem) acabaria questionando e renegando até tua imagem e tua verdade se o oprimissem com um fardo tão terrível como o livre arbítrio?

A última peça, a que fui ontem com meu pai, é A Dócil, publicada em conjunto com Sonho de um Homem Ridículo. Um curto conto, amado por muitos, mas não por mim (passei a gostar um pouco mais depois de ouvir algums interpretações). A peça foi muito bem montada, iniciando e terminando do lado de fora, disputando a atenção dos transeuntes e dos fregueses de um boteco da avenida São João com jogos decisivos do Palmeiras e do Corinthians. Alguns recursos diferentes parecem ter sido acrescentados à montagem apenas pelo diferente. Houve uma combinação forte e interessante da narrativa em primeira pessoa do passado com os curtos diálogos no presente.

As três primeiras são monólogos, e a última um diálogo em que o narrador predomina 99% do tempo. Das quatro aquela de que mais gostei e que mais me absorveu foi Memórias do Subsolo.

Não fui à recente e elogiada encenação de O Idiota não só por causa da esdrúxula duração (8 horas divididas em 3 dias), mas também por ainda não ter lido a obra. Porém aproveitei a ocasião e assisti o debate entre Paulo Bezerra e Bóris Schneiderman, os dois principais tradutores. Lá pude perceber diversas opiniões muito diferentes da minha, e algumas frases memoráveis, como quando consegui conversar um pouco com o Paulo Bezerra e ele se referenciou à morte da usurária de Crime e Castigo como uma denuncia ao “dinheiro se assenhorando das relações humanas”. Aliás, esse tema é frequente em suas obras: o protagonista de A Dócil também é um agiota. Em outro momento Paulo Bezerra citou o que se especulava ser a continuação de Irmãos Karamázov: Aliócha tornaria-se o modelo do revolucionário socialista. Será? Dostoiévski morreu antes.

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