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A importância do leitor: Montaigne e Pascal

Estranhei um bofetão que Pascal dá em Montaigne em relação aos ensaios (pensamento 59/63):

“Os defeitos de Montaigne são grandes. Termos lascivos: isso não vale nada, diga o que quiser Mademoiselle de Gournay. Crédulo: gente sem olhos. Ignorante: quadratura do círculo, o mundo maior. Suas opiniões sobre o homicídio voluntário, sobre a morte. Inspira uma indiferença pela salvação sem temor e sem arrependimento. Como o seu miro não tinha em mira estimular a piedade, ele não era obrigado a isso; mas sempre é obrigado a não desviar dela. Podem-se desculpar suas atitudes um tanto livres e voluptuosas em algumas conjunturas da vida, porém não os seus sentimentos completamente pagãos em face da morte; pois é preciso renunciar a toda piedade, quando nem se quer se deseja ter uma morte cristã; ora, em todo o seu livro ele só pensa em morrer covardemente e com moleza.

Cheguei a essa passagem ao ler o artigo do Les Essais na Wikipedia. Gostei bastante dos diversos ensaios traduzidos nessa nova edição de Penguin Books, de Rosa Freire d’Aguiar. Reflexões morais sobre a vida, amor, morte, amizade (e claro, canibais!). Aliás, morte e homicídio, a questão do direito dos super homens, dão o tom existencialista que tanto aprecio e busco na literatura.

Mesmo podendo ofender a religiosidade e cristandade de Pascal, parecera violenta sua forma de esbravejar sobre a obra de Montaigne. Seria um tanto pseudointelectual. Quando mostrei essa passagem a um sábio conhecido, disse-me que recordava de algo um pouco diferente e foi buscar sua tradução de Les Pensees.

Para meu espanto, havia lá próximo um trecho onde Pascal deixa claro que o texto de Montaigne o faz refletir profundamente:

Não é em Montaigne, mas em mim mesmo, que encontro tudo o que nele vejo.

Como bom cidadão, editei o artigo dos ensaios na wikipedia e adicionei essa linda frase de Pascal: Ce n’est pas dans Montaigne mais dans moi que je trouve tout ce que j’y vois. A forma com que o texto nos impacta é o seu real valor.

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Civilizando os canibais

O extermínio indígena que se procedeu nas Américas com a chegada dos colonizadores não horroriza apenas os estudiosos recentes. Por muitas vezes, encontramos exatamente o oposto. Dois textos famosos, da época dos descobrimentos, são categóricos ao expor as mazelas trazidas na tentativa de “civilizar a raça inferior”.

O ensaio Sobre os Canibais, de Montaigne, é uma reflexão sobre seu encontro com três índios tupinambás que foram trazidos a Europa. Um texto que exalta o modo de vida indígena, e compara esse estilo puro com o da sociedade da Europa:

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato (canibalismo), mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagados pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião).

Afirmam que Shakespeare lera esse texto antes de conceber A Tempestade. Na peça, o personagem-anagrama Caliban é o monstro selvagem que habita a ilha a ser conquistada. Ele é aprisionado e forçado a utilizar a língua do dominador, e também acusado de tentar estuprar sua filha. Em contraste, é exposto o lado dócil do colonizado, que recebe muito bem o futuro anfitrião.

Ambos textos são frequentemente referenciados por autores pós-colonialistas.

No fim do século 19, Jules Ferry, o primeiro defensor da escola moderna, “laica, gratuita e obrigatório”, não demonstra a mesma visão aguçada ao argumentar sobre o tratamento despendido aos indígenas:

Senhores, há um segundo ponto, um segundo conjunto de ideias que eu devo igualmente expor…: é o lado humanitário e civilizador da questão. Senhores, deve-se falar mais alto e mais verdadeiramente. Deve-se falar abertamente que as raças superiores têm um direito frente às raças inferiores. Eu repito que para as raças superiores têm um direito, pois há um dever para elas. Elas têm o dever de civilizar as raças inferiores. Esses deveres foram frequentemente ignorados na história dos séculos precedentes, e certamente quando os exploradores espanhóis introduziam a escravidão na América central, eles não cumpriam seu dever de raça superior. Mas hoje em dia, eu digo que as nações europeias conseguiram, com grandeza e honestidade, exercer desse dever superior da civilização.

Bárbaro. Difícil descobrir quem não é canibal. Posso ver esse mesmo argumento sendo usado ao “levar a democracia para os países do Magrebe e do Oriente Médio”. 500 anos depois, o colonizador ainda bate e acaricia.

Como um conterrâneo de Montaigne pudera se expressar assim, 300 anos depois dos Ensaios? Georges Clemenceau não o perdoou:

Aqui, em suas próprias palavras, a tese do sr Ferry e nós vemos o governo francês exercendo seu direito sobre as raças inferiores indo guerrear contra elas e convertendo-as, a força, para as vantagens da civilização. Raças superiores! Raças inferiores! Isso é falado com muita facilidade. Ao meu ver, eu sou menos categórico desde que eu vi sábios alemães demonstrar cientificamente que a França devia ser vencida na guerra franco-alemã, pois o francês é de uma raça inferior à alemã. Desde então, eu confesso, eu considero duas vezes antes de me voltar a um homem e a uma civilização e pronunciar: homem ou civilização inferior! …

É a genialidade da raça francesa de ter generalizado a teoria do direito e da justiça, de ter entendido o problema da civilização era eliminar a violência das relações de homens entre eles dentro de uma mesma sociedade e de fazer tudo para eliminar a violência, por um futuro que nós não conhecemos, das relações entre as nações. (…) Veja a história da conquista destes povos que vocês chamam de bárbaros e vocês verão lá a violência, todos os crimes enfurecidos, a opressão, o sangue derramado em abundância, os fracos oprimidos, tiranizados pelo vencedor! Aqui a história da sua civilização! … Quantos crimes atrozes, pavorosos foram cometidos em nome da justiça e da civilização. Eu não digo nada dos vícios que o europeu traz consigo: o alcool, o ópio que ele espalha, que ele impõe se lhe agrada. E é um sistema como esse que você tenta justificar na França, na pátria dos direitos humanos!

Eu não entendo que nós não tenhamos sido unânimes aqui em levantar-nos de uma vez só para protestar violentamente contra suas palavras. Não, não há direito de nações ditas superiores contra as nações inferiores. Existe a luta pela vida que é uma necessidade fatal, que enquanto crescemos dentro da civilização nós devemos nos mater dentro dos limites da justiça e do direito. Mas não tentemos mascarar a violência com o nome hipócrita ‘civilização’. Não falemos de direito, de dever. A conquista que você recomenda, é o abuso puro e simples da força que dá a civilização científica sobre as civilizações rudimentares para se empossar do homem, o torturar, extrair toda a força que está nele para o lucro da suposta civilização. Não é o direito, é a negação desse. Chamar isso de civilização, é juntar a violência a hipocrisia.

Touché.

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