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Aquilo que não é dito: o subsolo em Camus, Dostoievski e Nietzsche

Sei que é covardia fazer a ligação entre Mito de Sísifo e qualquer livro de Dostoievski, mas fá-la-ei. Ao menos memórias do subsolo não é citado em nenhum momento.

“Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.” – Memórias do Subsolo, Dostoiévski

“Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz.” – O Mito de Sísifo, Albert Camus.

Nesse capítulo, intitulado ‘A conquista’, há muitas referências para a ação versus contemplação. No melhor estilo do subsolo. “Sempre chega o momento em que é preciso escolher entre a ação e a contemplação… Os conquistadores sabem que a ação é inútil em si mesma.”. Ser ou não ser?

Nietzsche fala de esconder o que se pensa através da escrita. Aforismo 289 de Além do bem e do mal: “Um eremita não crê que um filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha expresso num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder precisamente o que se traz dentro de si?”. Nietzche continua, aprofunda-se no subsolo: “ele duvidará inclusive que um filósofo possa ter opiniões ‘verdadeiras e últimas’, e que nele não haja, não tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda ‘fundamentação’. Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: ‘Existe algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não acvar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de suspeito nisso’. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara”.

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O maior dos pesos vem do eterno retorno do mesmo

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer, cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. Você não se prostaria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

— Nietzsche em Gaia Ciência, aforismo 341 (tradução do Paulo Cesar de Souza)

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Morte de Deus, fim da moral e o super-homem: Nietzsche e Dostoiévski

Na página 109 da tradução de Paulo Bezerra, é revelado o conteúdo do artigo de Ivan Karamazov:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Já na conversa com o diabo (páginas 840), este cita um outro pensamento de Ivan Karamazov (curioso observar como Dostoievski prefere apresentar os profundos pensamentos de Ivan através de outras pessoas). Aqui aparece o Homem-Deus (человеко-бог). Seria o protótipo do super-homem (Übermensch) nietzschiano?

“Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era … virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começara o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito.”

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