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Pula, viadinho!

Mesmo com seus pais presentes na beira da piscina, sou o único a incentivar meu sobrinho, “você também consegue!”, e ele sobe graciosamente o fim da pequena escada copiando os recentes movimentos do irmãozinho.

Um pé para cima, procura o degrau com a ponta do dedão, leva a cintura para um lado quase como uma dança, “tiooo, tá me vendo?”, meneia a cabeça evitando acenar, outro degrau. Sua mão desliza e faz ranger o metal com a delicada fricção, procura pelos olhos do pai.

Quer surpreende-lo repetindo o salto do caçula, mas meu irmão fita o jornal e finge ignorar os putos que caçoam e sempre caçoaram de seu magro Rafael. Vira a página, mais um fuxico, outro comentário ali, “é
o bichinha”, e risos, e soslaios, um dedo indicador no ar, galhofa.

Rafael chega ao topo, pensa, estende o pescoço para mensurar o desafio, sem soltar nenhuma mão das alças do corrimão. Plantas dos pés arqueadas evitam a umidade e a baixa temperatura da plataforma. Os olhos dos vizinhos parecem gravitar a sunga azul do menino, e o interior paulista segue com sua merda preconceituosa.

Pega impulso, reflete, vacila, essa demora me consome, difícil esperar mais. Dá um passo rápido e hesita com um sorriso sem mostrar dentes, estou farto, impaciente, cerro minhas mãos com força uma vez, duas vezes, mas agora me é impossível… e confesso, sozinho na voz e uníssono em pensamento, num bramido: “Pula, viadinho!”.

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O que é preconceito? De Higienópolis a Danilo Gentili

Em um estado do sul do país, estávamos em três amigos. Um deles tinha um encontro marcado com uma garota da cidade. De posse do carro do outro amigo, fomos todos buscá-la. Depois de uma curta introduçao, resolvi quebrar o gelo:

“Poxa Fulano! Que óculos escuro horrível este aí!” – eu disse.
“É mesmo!” – respondeu o proprietário do veículo.
“É verdade, puta óculos de preto!” – ensurdeceu-nos a menina.

Não houve reação. Nenhum de nós estávamos preparados para algo assim, no século 21. Achava que isso não existisse no Brasil. Pessoalmente me senti impotente de começar qualquer argumentação. O que falar pra ela? O silêncio doía aos nossos ouvidos e nossas almas.
Não lembro quanto tempo se passou até que alguém pudesse reunir forças para abrir a boca e iniciar algum assunto banal. É como uma daquelas piores memórias, que tentam se esconder em nosso subsolo. Revejo a cena pensando em possíveis formas de “jogar tudo que penso na cara dela”. Somente muitos segundos depois, que pareceram uma infinidade, a conversa reiniciou, com qualquer outro comentário banal. Mesmo assim, minha cara-de-bunda era nítida e permaneceu por muito tempo, como a de meus outros dois amigos.

Esse é um exemplo claro e bárbaro. Não há como ficar mais explícito… talvez uma bisavó que não gostava de que seu bisavô contratasse “escurinhos” possa competir.

Refletindo esse caso, percebi que devo continuar me policiando para nunca mais utilizar expressões com as quais convivi na adolescência. É frequente ouvir, em São Paulo, que esse é um óculos “de baiano”. Trabalho com profissionais baianos que se vestem melhor que eu e de muita inteligência, como então usar um termo desses? Há mais casos horrorosos, como se referir a um trabalhador como nordestino, um porteiro como cearense. Meu colega mais inteligente da faculdade, o chouchou de la maitresse, assim como amigos da profissão, é de Fortaleza, e devo muito dos meus conhecimentos a eles.

Se você tenta intervir, poderá receber a justificativa número 1 do manual do ignorante moderno: “ah, mas são os próprios nordestinos/negros/judeus/pobres/(coloque sua minoria (maioria?) aqui) quem têm preconceito com eles mesmos”. De chorar.

Mesmo se existisse uma minoria em que todos seus participantes possuissem determinada característica: podemos, devemos, queremos explicitar uma diferença que tenha conotação negativa?

Há algumas situações mais confusas.

E se o menino fosse negro e se pintasse de branco, como Cirilo do Carrossel? Seria tão engraçadinho? E a questão da camiseta “100% negro”? O professor Kabengele Munanga discute bem essas questões específicas de negros e brancos no Brasil.

Se Shylock, de Mercador de Veneza, pode ser interpretado por Al Pacino de forma tão amigável, podemos descartar a hipótese de preconceito da peça?

E chamar um amigo de veado, para brincar com ele, é aceitável? Podemos associar a cor rosa a homossexualidade, pela piada? E se ele for um jogador de volei homossexual, pode? Devo pensar duas vezes antes de brincar da mesma forma que as gerações antigas faziam com os meninos: “ah! e você vai querer uma bonequinha de natal? só falta me falar que ganhou roupa rosa!”.

E o garoto alto e magrelo, vale ressaltar sua semelhança com uma girafa? Não seria, de alguma forma, próximo a oferecer banana ao macaco? Ou seria uma justificativa para Danilo Gentili chamar negros de macacos:

Se é engraçado piada de gay e gordo, por que não é a de preto? Porque foram escravos no passado hoje são café-com-leite no mundo do humor? É isso? Eu posso fazer a piada com gay só porque seus ancestrais nunca foram escravos? Pense bem, talvez o gay na infância também tenha sofrido abusos de alguém mais velho com o chicote.

O mesmo Danilo Gentili que faz piada do Holocausto, ultrapassando o limite do politicamente incorreto, depois do terrível incidente que da infeliz moradora de Higienópolis criadora do meme “gente diferenciada“:

Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.

Danilo Gentili não está sozinho. Rafinha Bastos que o diga.

Simples brincadeiras? Acho que todas essas expressões já tiveram sua hora, e na próxima geração serão (hão de ser!) consideradas absurdos, como hoje são algumas que nossos avós e bisavós usavam. E não é nosso objetivo sermos melhores do que antes?

Será o fim, inclusive, da piada de português?

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