literatura

Shakespeare e Henry James

Lendo sobre Henry James no Wikipedia, encontrei essa descrição que Edmund Wilson (!?) faz sobre seu estilo de escrita:

“One would be in a position to appreciate James better if one compared him with the dramatists of the seventeenth century—Racine and Molière, whom he resembles in form as well as in point of view, and even Shakespeare, when allowances are made for the most extreme differences in subject and form. These poets are not, like Dickens and Hardy, writers of melodrama—either humorous or pessimistic, nor secretaries of society like Balzac, nor prophets like Tolstoy: they are occupied simply with the presentation of conflicts of moral character, which they do not concern themselves about softening or averting. They do not indict society for these situations: they regard them as universal and inevitable. They do not even blame God for allowing them: they accept them as the conditions of life.

Mostrar os conflitos sem fazer julgamento moral, aceitando tudo como condições da vida. É sobre isto que gosto de ler. Traz um certo reconforto.

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Civilizando os canibais

O extermínio indígena que se procedeu nas Américas com a chegada dos colonizadores não horroriza apenas os estudiosos recentes. Por muitas vezes, encontramos exatamente o oposto. Dois textos famosos, da época dos descobrimentos, são categóricos ao expor as mazelas trazidas na tentativa de “civilizar a raça inferior”.

O ensaio Sobre os Canibais, de Montaigne, é uma reflexão sobre seu encontro com três índios tupinambás que foram trazidos a Europa. Um texto que exalta o modo de vida indígena, e compara esse estilo puro com o da sociedade da Europa:

Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato (canibalismo), mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagados pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca memória, não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o que é pior, a pretexto de piedade e religião).

Afirmam que Shakespeare lera esse texto antes de conceber A Tempestade. Na peça, o personagem-anagrama Caliban é o monstro selvagem que habita a ilha a ser conquistada. Ele é aprisionado e forçado a utilizar a língua do dominador, e também acusado de tentar estuprar sua filha. Em contraste, é exposto o lado dócil do colonizado, que recebe muito bem o futuro anfitrião.

Ambos textos são frequentemente referenciados por autores pós-colonialistas.

No fim do século 19, Jules Ferry, o primeiro defensor da escola moderna, “laica, gratuita e obrigatório”, não demonstra a mesma visão aguçada ao argumentar sobre o tratamento despendido aos indígenas:

Senhores, há um segundo ponto, um segundo conjunto de ideias que eu devo igualmente expor…: é o lado humanitário e civilizador da questão. Senhores, deve-se falar mais alto e mais verdadeiramente. Deve-se falar abertamente que as raças superiores têm um direito frente às raças inferiores. Eu repito que para as raças superiores têm um direito, pois há um dever para elas. Elas têm o dever de civilizar as raças inferiores. Esses deveres foram frequentemente ignorados na história dos séculos precedentes, e certamente quando os exploradores espanhóis introduziam a escravidão na América central, eles não cumpriam seu dever de raça superior. Mas hoje em dia, eu digo que as nações europeias conseguiram, com grandeza e honestidade, exercer desse dever superior da civilização.

Bárbaro. Difícil descobrir quem não é canibal. Posso ver esse mesmo argumento sendo usado ao “levar a democracia para os países do Magrebe e do Oriente Médio”. 500 anos depois, o colonizador ainda bate e acaricia.

Como um conterrâneo de Montaigne pudera se expressar assim, 300 anos depois dos Ensaios? Georges Clemenceau não o perdoou:

Aqui, em suas próprias palavras, a tese do sr Ferry e nós vemos o governo francês exercendo seu direito sobre as raças inferiores indo guerrear contra elas e convertendo-as, a força, para as vantagens da civilização. Raças superiores! Raças inferiores! Isso é falado com muita facilidade. Ao meu ver, eu sou menos categórico desde que eu vi sábios alemães demonstrar cientificamente que a França devia ser vencida na guerra franco-alemã, pois o francês é de uma raça inferior à alemã. Desde então, eu confesso, eu considero duas vezes antes de me voltar a um homem e a uma civilização e pronunciar: homem ou civilização inferior! …

É a genialidade da raça francesa de ter generalizado a teoria do direito e da justiça, de ter entendido o problema da civilização era eliminar a violência das relações de homens entre eles dentro de uma mesma sociedade e de fazer tudo para eliminar a violência, por um futuro que nós não conhecemos, das relações entre as nações. (…) Veja a história da conquista destes povos que vocês chamam de bárbaros e vocês verão lá a violência, todos os crimes enfurecidos, a opressão, o sangue derramado em abundância, os fracos oprimidos, tiranizados pelo vencedor! Aqui a história da sua civilização! … Quantos crimes atrozes, pavorosos foram cometidos em nome da justiça e da civilização. Eu não digo nada dos vícios que o europeu traz consigo: o alcool, o ópio que ele espalha, que ele impõe se lhe agrada. E é um sistema como esse que você tenta justificar na França, na pátria dos direitos humanos!

Eu não entendo que nós não tenhamos sido unânimes aqui em levantar-nos de uma vez só para protestar violentamente contra suas palavras. Não, não há direito de nações ditas superiores contra as nações inferiores. Existe a luta pela vida que é uma necessidade fatal, que enquanto crescemos dentro da civilização nós devemos nos mater dentro dos limites da justiça e do direito. Mas não tentemos mascarar a violência com o nome hipócrita ‘civilização’. Não falemos de direito, de dever. A conquista que você recomenda, é o abuso puro e simples da força que dá a civilização científica sobre as civilizações rudimentares para se empossar do homem, o torturar, extrair toda a força que está nele para o lucro da suposta civilização. Não é o direito, é a negação desse. Chamar isso de civilização, é juntar a violência a hipocrisia.

Touché.

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O que é preconceito? De Higienópolis a Danilo Gentili

Em um estado do sul do país, estávamos em três amigos. Um deles tinha um encontro marcado com uma garota da cidade. De posse do carro do outro amigo, fomos todos buscá-la. Depois de uma curta introduçao, resolvi quebrar o gelo:

“Poxa Fulano! Que óculos escuro horrível este aí!” – eu disse.
“É mesmo!” – respondeu o proprietário do veículo.
“É verdade, puta óculos de preto!” – ensurdeceu-nos a menina.

Não houve reação. Nenhum de nós estávamos preparados para algo assim, no século 21. Achava que isso não existisse no Brasil. Pessoalmente me senti impotente de começar qualquer argumentação. O que falar pra ela? O silêncio doía aos nossos ouvidos e nossas almas.
Não lembro quanto tempo se passou até que alguém pudesse reunir forças para abrir a boca e iniciar algum assunto banal. É como uma daquelas piores memórias, que tentam se esconder em nosso subsolo. Revejo a cena pensando em possíveis formas de “jogar tudo que penso na cara dela”. Somente muitos segundos depois, que pareceram uma infinidade, a conversa reiniciou, com qualquer outro comentário banal. Mesmo assim, minha cara-de-bunda era nítida e permaneceu por muito tempo, como a de meus outros dois amigos.

Esse é um exemplo claro e bárbaro. Não há como ficar mais explícito… talvez uma bisavó que não gostava de que seu bisavô contratasse “escurinhos” possa competir.

Refletindo esse caso, percebi que devo continuar me policiando para nunca mais utilizar expressões com as quais convivi na adolescência. É frequente ouvir, em São Paulo, que esse é um óculos “de baiano”. Trabalho com profissionais baianos que se vestem melhor que eu e de muita inteligência, como então usar um termo desses? Há mais casos horrorosos, como se referir a um trabalhador como nordestino, um porteiro como cearense. Meu colega mais inteligente da faculdade, o chouchou de la maitresse, assim como amigos da profissão, é de Fortaleza, e devo muito dos meus conhecimentos a eles.

Se você tenta intervir, poderá receber a justificativa número 1 do manual do ignorante moderno: “ah, mas são os próprios nordestinos/negros/judeus/pobres/(coloque sua minoria (maioria?) aqui) quem têm preconceito com eles mesmos”. De chorar.

Mesmo se existisse uma minoria em que todos seus participantes possuissem determinada característica: podemos, devemos, queremos explicitar uma diferença que tenha conotação negativa?

Há algumas situações mais confusas.

E se o menino fosse negro e se pintasse de branco, como Cirilo do Carrossel? Seria tão engraçadinho? E a questão da camiseta “100% negro”? O professor Kabengele Munanga discute bem essas questões específicas de negros e brancos no Brasil.

Se Shylock, de Mercador de Veneza, pode ser interpretado por Al Pacino de forma tão amigável, podemos descartar a hipótese de preconceito da peça?

E chamar um amigo de veado, para brincar com ele, é aceitável? Podemos associar a cor rosa a homossexualidade, pela piada? E se ele for um jogador de volei homossexual, pode? Devo pensar duas vezes antes de brincar da mesma forma que as gerações antigas faziam com os meninos: “ah! e você vai querer uma bonequinha de natal? só falta me falar que ganhou roupa rosa!”.

E o garoto alto e magrelo, vale ressaltar sua semelhança com uma girafa? Não seria, de alguma forma, próximo a oferecer banana ao macaco? Ou seria uma justificativa para Danilo Gentili chamar negros de macacos:

Se é engraçado piada de gay e gordo, por que não é a de preto? Porque foram escravos no passado hoje são café-com-leite no mundo do humor? É isso? Eu posso fazer a piada com gay só porque seus ancestrais nunca foram escravos? Pense bem, talvez o gay na infância também tenha sofrido abusos de alguém mais velho com o chicote.

O mesmo Danilo Gentili que faz piada do Holocausto, ultrapassando o limite do politicamente incorreto, depois do terrível incidente que da infeliz moradora de Higienópolis criadora do meme “gente diferenciada“:

Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz.

Danilo Gentili não está sozinho. Rafinha Bastos que o diga.

Simples brincadeiras? Acho que todas essas expressões já tiveram sua hora, e na próxima geração serão (hão de ser!) consideradas absurdos, como hoje são algumas que nossos avós e bisavós usavam. E não é nosso objetivo sermos melhores do que antes?

Será o fim, inclusive, da piada de português?

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