literatura, religião

Sidarta e a fuga de nós mesmos

Kundun e o Pequeno Buda eram meus únicos contatos com o budismo.

Os pais de Hermann Hesse serviram numa missão protestante para difundir o cristianismo na Ásia, especialmente na India. Hesse vai conhecer o país já bem mais velho, quando se interessa mais pela religião e pelo budismo. No livro Sidarta, Hesse conta a história dessa personagem (não confundir com Sidarta Gotama, o Buda, que também é personagem no livro), saindo da alta casta religiosa, para virar um asceta. Depois de alguns anos vai conhecer a luxúria, a cupidez, o amor de uma mulher e de certa forma constituir uma família, para então atingir o nirvana ao se tornar novamente um asceta.

Durante o percurso, temos reflexões de fácil entendimento e de muita beleza, sobre relacionamento com pais, Deus, amor, riqueza e outros temas essenciais. Em busca de paz e sabedoria, seu amigo Govinda sempre recomenda a meditação. Meditação que hoje está em alta, e todo bom pseudointelectual já gastou um tempo estudando alguma técnica.

O que é a meditação? O que é o abandono do corpo? Que significa o jejum? E a suspensão do fôlego? São modos de fugirmos de nós mesmos. São momentos durante os quais o homem escapa à tortura de seu eu. Fazem-nos esquecer, passageiramente, o sofrimento e a insensatez da vida. A mesma fuga, o mesmíssimo esquecimento, o boiadeiro encontra-os na estalagem , quando bebe algumas tigelas de vinho de arroz ou de leite de coco fermentado. Então cessa de sentir o seu eu, cessa de padecer de dores, anestesia-se por algum tempo.

Misturam-se fugir e encontrar. Essa tentativa de nos encontrarmos parece ser em vão, e é mais fácil se confortar com qualquer escapismo.

Há ainda uma analogia com o arco e flecha que me lembrou de um conhecido trecho de Gibran:

Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas. O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força. Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe

A personagem do balseiro Vasudeva é quem mais me impressiona. Praticamente nada fala. Gosto muito dessa ausência de palavras, focando na arte de escutar, e Sidarta tenta aprender essa virtude do amigo:

Aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião.

Em O mito de Sísifo, Camus abre o livro com um antológico “existe apenas um problema filosófico realmente sério: o suicídio“. Em Sidarta, o suicídio também está presente e é cogitado. Em O Lobo da Estepe, o protagonista havia prometido suicidar-se aos 50 anos; Dostoiévski diz que ninguém deveria ter o castigo de viver após seus 40 anos, em Memórias do Subsolo. Tema muito recorrente entre os romancistas com um pé no existencialismo.

Excelente livro, abordando todos os assuntos que nos fazem sofrer e refletir, em um pequeno número de páginas.

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