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A vontade de acreditar em Deus: A Vida de Pi, Dostoievski e Camus

Não é a toa que o jovem Pi aparece lendo Dostoievski e Camus em ‘As aventuras de Pi’.

A grande cena do filme é quando o Pi confronta o escritor, para que ele decida qual a história era melhor: a trágica ou a fábula. No livro, a discussão é feita com os dois japoneses da seguradora. Coloquei o primeiro parágrafo do filme e o restante do livro:

Pi Patel: “I told you two stories that account for the 227 days in between. Neither explain the sinking of the Tsimtsum. Neither make a factual difference to you. You cannot prove which story is true and which is not. You must take my word for it. In both stories the ship sinks, my entire family dies, and I suffer. So tell me, since it makes no factual difference to you and you can’t prove the question either way, which story do you prefer? Which is the better story?”

Mr. Okamoto: ‘That’s an interesting question’
Mr. Chiba: ‘The story with animals.’
Mr. Okamoto: ‘Yes. The story with animals is the better story.’
Pi Patel: ‘Thank you. And so it goes with God.’

A conclusão de Pi é simples: se as duas histórias tem o mesmo resultado, e não há como provar nem uma, nem outra, melhor acreditar em Deus.


Os filósofos que alimentaram Pi na adolescência tem pontos que eu considero a favor e contra.

Em Os Demônios, Dostoievski põe na boca de Chatov, para Stravogin: “Não foi você mesmo que me disse que, se lhe provassem matematicamente que a verdade estava fora de Cristo, você aceitaria melhor ficar com Cristo do que com a verdade?“. É basicamente a mesma questão e exatamente a mesma resposta de Pi!

Nas notas de rodapé da edição da editora 34, há a ligação com o diário de Dostoievski, onde ele diz: “Esse símbolo é muito simples: acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito que Cristo, e não só não há como eu ainda afirmo com um amor cioso que não pode haver. Além disso, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, melhor para mim seria querer ficar com Cristo que com a verdade.”

Camus faz diferente. Em o Mito de Sísifo, ele apresenta três formas de encarar a vida: o suicídio, encontrar um sentido pra vida ou encarar o absurdo que é viver. Encontrar o sentido da vida é divido em dois, mas encarado da mesma forma: acreditar em Deus ou dar um objetivo para você, como “ajudar os pobres”, “defender os animais”, etc. Ele chama ambas as opções de suicídio filosófico, os dois são o salto para a fé (leap of faith), para acalmar corações. Camus renega todos esses tipos de suicídio e vai concluir que você deve viver encarando a vida de frente, com todo o absurdo que é o existir, com todas as contradições. Viver a revolta. Em outras palavras, não vale a pena ficar com a história mais bela…

E, trazendo para um contexto moderno, podemos ver essa entrevista do físico e “neo-ateístas” Lawrence Krauss: “…prefiro pensar em mim não como um ateu, e sim como um antiteísta. Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista… Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante.”

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Aquilo que não é dito: o subsolo em Camus, Dostoievski e Nietzsche

Sei que é covardia fazer a ligação entre Mito de Sísifo e qualquer livro de Dostoievski, mas fá-la-ei. Ao menos memórias do subsolo não é citado em nenhum momento.

“Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.” – Memórias do Subsolo, Dostoiévski

“Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz.” – O Mito de Sísifo, Albert Camus.

Nesse capítulo, intitulado ‘A conquista’, há muitas referências para a ação versus contemplação. No melhor estilo do subsolo. “Sempre chega o momento em que é preciso escolher entre a ação e a contemplação… Os conquistadores sabem que a ação é inútil em si mesma.”. Ser ou não ser?

Nietzsche fala de esconder o que se pensa através da escrita. Aforismo 289 de Além do bem e do mal: “Um eremita não crê que um filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha expresso num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder precisamente o que se traz dentro de si?”. Nietzche continua, aprofunda-se no subsolo: “ele duvidará inclusive que um filósofo possa ter opiniões ‘verdadeiras e últimas’, e que nele não haja, não tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda ‘fundamentação’. Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: ‘Existe algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não acvar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de suspeito nisso’. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara”.

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