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A vontade de acreditar em Deus: A Vida de Pi, Dostoievski e Camus

Não é a toa que o jovem Pi aparece lendo Dostoievski e Camus em ‘As aventuras de Pi’.

A grande cena do filme é quando o Pi confronta o escritor, para que ele decida qual a história era melhor: a trágica ou a fábula. No livro, a discussão é feita com os dois japoneses da seguradora. Coloquei o primeiro parágrafo do filme e o restante do livro:

Pi Patel: “I told you two stories that account for the 227 days in between. Neither explain the sinking of the Tsimtsum. Neither make a factual difference to you. You cannot prove which story is true and which is not. You must take my word for it. In both stories the ship sinks, my entire family dies, and I suffer. So tell me, since it makes no factual difference to you and you can’t prove the question either way, which story do you prefer? Which is the better story?”

Mr. Okamoto: ‘That’s an interesting question’
Mr. Chiba: ‘The story with animals.’
Mr. Okamoto: ‘Yes. The story with animals is the better story.’
Pi Patel: ‘Thank you. And so it goes with God.’

A conclusão de Pi é simples: se as duas histórias tem o mesmo resultado, e não há como provar nem uma, nem outra, melhor acreditar em Deus.


Os filósofos que alimentaram Pi na adolescência tem pontos que eu considero a favor e contra.

Em Os Demônios, Dostoievski põe na boca de Chatov, para Stravogin: “Não foi você mesmo que me disse que, se lhe provassem matematicamente que a verdade estava fora de Cristo, você aceitaria melhor ficar com Cristo do que com a verdade?“. É basicamente a mesma questão e exatamente a mesma resposta de Pi!

Nas notas de rodapé da edição da editora 34, há a ligação com o diário de Dostoievski, onde ele diz: “Esse símbolo é muito simples: acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito que Cristo, e não só não há como eu ainda afirmo com um amor cioso que não pode haver. Além disso, se alguém me demonstrasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, melhor para mim seria querer ficar com Cristo que com a verdade.”

Camus faz diferente. Em o Mito de Sísifo, ele apresenta três formas de encarar a vida: o suicídio, encontrar um sentido pra vida ou encarar o absurdo que é viver. Encontrar o sentido da vida é divido em dois, mas encarado da mesma forma: acreditar em Deus ou dar um objetivo para você, como “ajudar os pobres”, “defender os animais”, etc. Ele chama ambas as opções de suicídio filosófico, os dois são o salto para a fé (leap of faith), para acalmar corações. Camus renega todos esses tipos de suicídio e vai concluir que você deve viver encarando a vida de frente, com todo o absurdo que é o existir, com todas as contradições. Viver a revolta. Em outras palavras, não vale a pena ficar com a história mais bela…

E, trazendo para um contexto moderno, podemos ver essa entrevista do físico e “neo-ateístas” Lawrence Krauss: “…prefiro pensar em mim não como um ateu, e sim como um antiteísta. Não posso provar sem sombra de dúvidas que Deus não existe, mas posso afirmar que preferiria muito mais viver num universo em que ele não exista… Se existisse um Deus, ele certamente teria deixado de se preocupar com os desígnios do cosmos logo depois de criá-lo, há 13,7 bilhões de anos, pois tudo o que aconteceu desde então pode ser explicado pela ciência. Não, Deus talvez não seja irrelevante. Ele é redundante.”

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O Idiota, de Dostoievski, no teatro e cinema

Perdi a encenação do Idiota que teve aqui em São Paulo, em cartaz durante mais de um ano. Mas apenas li o livro quando as apresentações estavam para encerrar. Uma pena. Quem sabe não volta ao circuito teatral mais uma vez?

Em compensação, assisti a série russa de 2003, com alguns atores conhecidos. Só consegui comprar em Moscow, sem legendas em inglês. Dependendo da sua opinião em relação a downloads, é possível também baixar via torrent com legendas em inglês.

Akira Kurosawa fez também sua versão (que infelizmente foi editada e lançada com metade da duração prevista), e cita Dostoievski como sendo seu autor preferido, “quem escreve mais honestamente sobre a natureza humana”: “Of all my films, people wrote to me most about this one… …I had wanted to make The Idiot long before Rashomon. Since I was little I’ve liked Russian literature, but I find that I like Dostoevsky the best and had long thought that this book would make a wonderful film. He is still my favourite author, and he is the one — I still think — who writes most honestly about human existence.

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Aquilo que não é dito: o subsolo em Camus, Dostoievski e Nietzsche

Sei que é covardia fazer a ligação entre Mito de Sísifo e qualquer livro de Dostoievski, mas fá-la-ei. Ao menos memórias do subsolo não é citado em nenhum momento.

“Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.” – Memórias do Subsolo, Dostoiévski

“Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz.” – O Mito de Sísifo, Albert Camus.

Nesse capítulo, intitulado ‘A conquista’, há muitas referências para a ação versus contemplação. No melhor estilo do subsolo. “Sempre chega o momento em que é preciso escolher entre a ação e a contemplação… Os conquistadores sabem que a ação é inútil em si mesma.”. Ser ou não ser?

Nietzsche fala de esconder o que se pensa através da escrita. Aforismo 289 de Além do bem e do mal: “Um eremita não crê que um filósofo – supondo que todo filósofo tenha sido antes um eremita – alguma vez tenha expresso num livro suas opiniões genuínas e últimas: não se escrevem livros para esconder precisamente o que se traz dentro de si?”. Nietzche continua, aprofunda-se no subsolo: “ele duvidará inclusive que um filósofo possa ter opiniões ‘verdadeiras e últimas’, e que nele não haja, não tenha de haver, uma caverna ainda mais profunda por trás de cada caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda ‘fundamentação’. Toda filosofia é uma filosofia-de-fachada – eis um juízo-de-eremita: ‘Existe algo de arbitrário no fato de ele se deter aqui, de olhar para trás e em volta, de não acvar mais fundo aqui e pôr de lado a pá – há também algo de suspeito nisso’. Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara”.

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Morte de Deus, fim da moral e o super-homem: Nietzsche e Dostoiévski

Na página 109 da tradução de Paulo Bezerra, é revelado o conteúdo do artigo de Ivan Karamazov:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Já na conversa com o diabo (páginas 840), este cita um outro pensamento de Ivan Karamazov (curioso observar como Dostoievski prefere apresentar os profundos pensamentos de Ivan através de outras pessoas). Aqui aparece o Homem-Deus (человеко-бог). Seria o protótipo do super-homem (Übermensch) nietzschiano?

“Quando a humanidade, sem exceção, tiver renegado Deus (e creio que essa era … virá), então cairá por si só, sem antropofagia, toda a velha concepção de mundo e, principalmente, toda a velha moral, e começara o inteiramente novo. Os homens se juntarão para tomar da vida tudo o que ela pode dar, mas visando unicamente à felicidade e à alegria neste mundo. O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial. Cada um saberá que é plenamente mortal, não tem ressurreição, e aceitará a morte com altivez e tranquilidade, como um deus. Por altivez compreenderá que não há razão para reclamar de que a vida é um instante, e amará seu irmão já sem esperar qualquer recompensa. O amor satisfará apenas um instante da vida, mas a simples consciência de sua fugacidade reforçará a chama desse amor tanto quanto ela antes se dissipava na esperança de um amor além-túmulo e infinito.”

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Dostoievski, Schopenhauer e a boa literatura

Tirei esta foto há 5 anos, em uma vitrine próxima ao túnel de travessia da Consolação. É utilizado como propaganda para o sebo que se encontrava por lá:

Essa crítica, aos autores populares e bem sucedidos em vida, não é nova. Schopenhauer possui um ensaio curto a respeito da literatura onde, além de recomendar ler duas vezes uma obra importante, ataca os autores contemporâneos, seus livros ruins e sua busca pelo dinheiro:

“They monopolise the time, money, and attention which really belong to good books and their noble aims; they are written merely with a view to making money or procuring places. They are not only useless, but they do positive harm. Nine-tenths of the whole of our present literature aims solely at taking a few shillings out of the public’s pocket, and to accomplish this, author, publisher, and reviewer have joined forces.”

E sobre o cuidado que devemos ter, para não ler esses livros “ruins”. A arte de não-ler.

“Hence, in regard to our subject, the art of not reading is highly important. This consists in not taking a book into one’s hand merely because it is interesting the great public at the time — such as political or religious pamphlets, novels, poetry, and the like, which make a noise and reach perhaps several editions in their first and last years of existence. Remember rather that the man who writes for fools always finds a large public: and only read for a limited and definite time exclusively the works of great minds, those who surpass other men of all times and countries, and whom the voice of fame points to as such. These alone really educate and instruct.

One can never read too little of bad, or too much of good books: bad books are intellectual poison; they destroy the mind. In order to read what is good one must make it a condition never to read what is bad; for life is short, and both time and strength limited.”

A conclusão vai longe, e contrapõe a fama contemporânea com a póstuma, colocando-as como mutualmente exclusivas:

“The great minds, however, which really bring the race further on its course, do not accompany it on the epicycles which it makes every time. This explains why posthumous fame is got at the expense of contemporary fame, and vice versa.

But I wish some one would attempt a tragical history of literature , showing how the greatest writers and artists have been treated during their lives by the various nations which have produced them and whose proudest possessions they are. It would show us the endless fight which the good and genuine works of all periods and countries have had to carry on against the perverse and bad. It would depict the martyrdom of almost all those who truly enlightened humanity, of almost all the great masters in every kind of art; it would show us how they, with few exceptions, were tormented without recognition, without any to share their misery, without followers; how they existed in poverty and misery whilst fame, honour, and riches fell to the lot of the worthless…”

E também em Dostoievski, no próprio Os Demônios, chamou-me atenção esta passagem que também discorre sobre autores contemporâneos:

“… todos esse nossos senhores são talentos de médio porte, que durante suas vidas costumam ser considerados quase gênios, mas quando morrem não só desaparecem da memória das pessoas quase sem deixar vestígios e meio de repente, como acontece que até em vida acabam sendo esquecidos e desprezados por todos com incrível rapidez, mal cresce a nova geração que substitui aquela em que eles atuavam. De certo modo, isso acontece subitamente entre nós, como se fosse uma mudança de decoração de teatro. Mas aqui não é absolutamente o que acontece com os Pushkins, Gogols, Molieres, Voltaires, com todos esses homens ativos que viveram para dizer sua palavra nova! Ainda é verdade que, no declínio de seus honrosos anos, esses mesmos senhores de talento de médio porte se esgotaram entre nós, e de modo habitualmente mais lamentável, sem que sequer o percebam inteiramente. Não raro, verifica-se que o escritor a quem durante muito tempo se atribuiu uma excepcional profundidade de ideias e do qual se esperava uma influência excepcional e séria sobre o movimento da sociedade, ao fim e ao cabo, revela que a sua ideiazinha básica era tão rala e pequena que ninguém sequer lamenta que ele tenha conseguido esgotar-se com tamanha brevidade. Mas os velhinhos grisalhos não notam tal coisa e se zangam. Justo ao término de sua atividade, seu amor próprio às vezes ganha proporções dignas de espanto.”

São opiniões fortes. Procuro ler as obras de autores já consagrados por um só motivo: tenho pouco tempo para ler, pouco tempo para literatura. “It would be a good thing to buy books if one could also buy the time to read them“. Tento seguir o que os mais conhecedores separaram, sabendo que dessa forma corro o risco de deixar para trás autores com quem poderia me indentificar ainda mais.

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A miséria humana: o mineiro só é solidário no câncer

A coluna do Luiz Ponde, na folha de São Paulo, de 28 de março de 2011, intitulada “Só os neuróticos verão a Deus” (infelizmente apenas para leitores), me arrepiou. Ela começa assim:

Tenho pensando demais em dinheiro e sucesso. Não porque eu os tenha em excesso (haveria uma “quantidade justa” de dinheiro e sucesso?), mas porque, sem eles, somos afogados no sentimento da inexistência. Talvez por isso tanta conversa fiada sobre sermos honestos e desapegados quando, na realidade, em silêncio, babamos por dinheiro e sucesso. Haverá amor sem dinheiro e sucesso, ou terá razão o grandioso Nelson Rodrigues quando diz que dinheiro compra até amor verdadeiro? Aqui, ele fala a anos-luz de distância da sensibilidade infantil da classe média e de seu marketing da ética que assola o mundo.

Ponde cita Nelson Rodrigues e Fiodor Dostoievski. Mais especificamente o dilema “se Deus não existe, tudo é permitido“, conhecida paráfrase ao artigo de Ivan Karamazov. Nelson Rodrigues é invocado com a curta peça “Bonitinha, mas ordinária“. Acabei lendo para ver se gostaria tanto quanto de um livro de Dostoiévski, sem muito sucesso. O livro repete o mantra “O mineiro só é solidário no câncer“, atribuída a Otto Lara Resende. Peixoto, amigo do protagonista Edgard, tira dessa anedota o mesmo tema de Irmãos Karamazov: “Você diz que não é o mineiro, mas o próprio homem, o próprio ser humano. E se o homem é isso, tudo é permitido. Eu concordo. Sou da mesma opinião.“.

Essa curta frase alivia diversas questões morais que aparecem na trama, afinal, se somos solidários apenas por estarmos em uma situação melhor ao do colega, o que resta de altruísta? o que resta de amoral? Edgard luta contra esse vazio, esse ateísmo didático, para se mostrar diferente dos outros e de que há sim uma certa esperança.

Será mesmo que somos apaixonados pela tragédia e desgraça dos outros? Este post de Alexandre Soares nos lembra de que como somos atraídos por grandes desgraças. O cinema-pipoca, #1 box office, já não é apenas o Batman e o James Bond. Agora inclui os sucessos com pacientes terminais que perderam sua família abruptamente. Por que gosto tanto de American Beauty e Weather Man? Em Crime e Castigo, há uma passagem (não achei) em que Dostoievski fala sobre uma pequena alegria que subitamente nos atinge face a notícia de morte de um conhecido. Meu pai diz que “o humano só aparece na sua tragédia“. Na dos outros, também. É o problema do bem.

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O problema do Bem

O problema do Mal é aquele dilema filosófico e religioso que soa pueril: por que o mal existe? Pergunto mais: o tal do bem existe? Quando você estende a mão para um necessitado na rua, o faz por por benevolência? Ou por interesse próprio? A gratidão do desconhecido, ou o reconhecimento do conhecido frente a sua boa ação tem valor inestimável. Sem eles continuaríamos a alimentar os pobres, fazer doações e ajudar o próximo?

Relatou a mãe de uma médica próxima à minha família, que sua filha disse: “Mãe, deixe-me estudar. Não estou fazendo isso por dinheiro ou para mostrar para alguém que eu sei, eu só quero saber cada vez mais enquanto viver“. Era a resposta para a crítica à sua carga exagerada de trabalho. Conheço a médica pessoalmente e sinto que falou honestamente. Mas não há alguma outra compensação, alguma forma de egoísmo, escondida por debaixo de toda ação altruísta? A resposta pode estar naquela coletânea de livros em que os sábios dizem encontrar todas as respostas. Isso mesmo, em Irmãos Karamázov, de Dostoiévski:

Eis a questao fundamental! É a minha questão mais torturante entre as demais. Abro os olhos e pergunto a mim mesma: aguentarias muito tempo esse caminho? E se um doente, cuja chagas lavasses, não te retrbiuísse imediatamente com a gratidão, mas, ao contrário, começasse a te torturar com caprichos, sem apreciar nem ligar para teu esforço humanitário, passasse a gritar contigo, a fazer exigências gorsseiras, até a queixar-se com algum superior…, o que farias? Teu amor continuaria ou não? Pois veja – eu mesma já conclui estremecida: se existe algo capaz de esfriar imediamente o meu amor “ativo” pela humanidade, esse algo é unicamente a ingratidão. Numa palavra, trabalho por dinheiro, exijo pagamento imediato, ou seja, que me elogiem e que amor com amor se pague. De outro modo não sou capaz de amar ninguém!

Sem a gratidão lavaríamos as chagas de outros? Talvez nem mesmo as nossas. Se ao ajudar um pedinte da rua, cuja sanidade já não podia ser verificada com precisão, você recebesse um soco no peito depois de comprar o croissant e leite que ele desejara? E depois, chocado e sem reação, com um volume grande de adrenalina no sangue, ouvisse-o vociferar de que ele é na verdade um policial árabe e mimicasse sacar um revólver da própria pele, como se ele estivesse dentro do seu rim, qual seria sua atitude? Na ausência da gratidão, na presença da ingratidão, você ofereceria a outra face, sem esperar recompensa na imortalidade?

No mesmo livro tem outra passagem que me impressiona. A mesma de onde parafraseamos como “se Deus não existe, tudo é permitido“. Ivan diz que o bem pode até existir, mas só existe pela crença na imortalidade, onde haveria gratidão ou acerto de contas:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Uma reflexão sobre a base judaico-cristã do castigo, do galardão. Em o Lobo da Estepe, Hermann Hesse mostra esse conflito interno ao enxergar uma boa ação como inócua:

Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convia, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba.

Prefiro me abster desse pensamento.

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Se eu fechar os olhos agora

Esse ano o prêmio Jabuti deu muito o que falar. Aproveitei para ler esse livro, de Edney Silvestre, que parece ser alguém famoso do jornalistmo da rede Globo.

Dois meninos crescendo nos anos 60, investigando a morte de uma mulher. Um pouco policial, um pouco histórico. Há um certo stream of consciousness, mas sem dificultar a leitura como acontece pra mim com James Joyce. Tem 300 páginas, mas é um livro curto, já que há bastante espaço em branco nos rápidos (e divertidos) diálogos. Muitas vezes os dois meninos-detetives são uníssonos no diálogo ou se completam, como neste, em que Eduardo começa, e Paulo sempre meneia a cabeça:

– Nós sabemos que não somos crianças…
– Não somos.
– Mas vocês adultos acham que somos.
– Acham.
– Agorinha mesmo o senhor nos chamou de meninos.
– Chamou.

Lembrou-me dos dois palhaços do Inpetor Geral de Gogól. Diálogos bonitos e que remetem ao companheirismo pueril, com um toque de O Gênio do Crime. Curiosamente os protagonistas, juntos, foram meu nome: Paulo e Eduardo. Coincidências menores que essas seriam o suficiente para impactar a minha leitura.

Algumas vezes os meninos conversam como adultos. Isso me incomoda bastante: tirar a verossimilhança que está sempre presente nas obras que gosto. Parecido com Kolia e seus amigos em Irmãos Karamazov. Talvez eu veja Dostoiévski em tudo. Melhor: vejo tudo em Dostoiévski, como todo bom pseudointelectual. Em outros momentos são usadas palavras que eu diria serem modernas, ou ainda comparações contemporâneas, como dizer que uma situação é pior que um “melodrama mexicano”. Por mais que possa ser verídico (não sei se é), já eram famosas e melosas as novelas mexicanas em 1960? E o fim do livro é um melodrama, no bom sentido, dando nó na garganta: “Se eu tivesse um irmão, queria que fosse você“.

Leitura fácil e agradável. A parte investigativa tem o estilo que eu gosto: não é como Holmes que deduz tudo e só revela no final o raciocínio, mas também é mais rápido que Poirot. Por diversas vezes o texto pula alguns momentos que se tornariam óbvios, e você mesmo faz a ligação entre o que aconteceu entre uma passagem a outra.

Lendo a contra capa Luiz Ruffato diz que “o corpo de Anita é transubstanciado no corpo do Brasil“. Não gosto de interpretações mirabolantes, mas talvez o autor queira mesmo mostrar algo assim, já que diz “nada neste país é o que parece! E esta cidade é um microcosmo do Brasil“. Em diversas ocasiões, os personagens, no meio da investigação, reclamam ou elogiam a ditadura, Getúlio, Jãnio e Juscelino. Poderia ser uma abordagem interessante, mas essas discussões aparecem em pontos que, na minha opinião, não se encaixam. O livro continuaria bom sem essa “profundidade”, prefiro as referências a filmes e outros fatos que o livro também faz.

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A produção teatral de Dostoiévski

Dostoievski Não há. Ele não escreveu nenhuma peça. Aqui no Brasil, depois da primeira grande tradução de Paulo Bezerra pela editora 34, Crime Castigo, Dostoiévski é o maior sucesso de releitura que eu possa imaginar. Isso trouxe diversas adaptações para os palcos brasileiros. Não sou um frequentador de teatro, mas dada a paixão pelo escritor eu assisti a algumas delas.

A primeira encenação foi a de Sonho de Um Homem Ridículo, no teatro Ágora, com Celso Frateschi. O ator e diretor parece ser realmente um fã. O texto, apesar de ter o estilo de monólogo de que eu gosto, não me empolga. A peça foi cansativa, mesmo sendo curta. Quem conhece o estabelecimento sabe como lá às vezes fica muito quente, o que creio ter atrapalhado bastante. Mas Celso não iria parar por aí…

Depois teve a encenação do meu livro favorito, Memórias do Subsolo. A peça é extremamente fiel ao texto e eu podia reconhecer diversas das frases que me marcaram muito, aquelas que a gente circula com lápis:

Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.

É o livro que deixa a todos inquietos: elogia os homens de ação, e também os ridiculariza, denunciando a inutilidade de tentar fazer algo frente a nossa insignificância:

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui definido positivamente; haveria o que dizer de mim. “Preguiçoso!” realmente é um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me respeitar incessantemente.

A atriz Mika Lins foi excelente, sem o que eu consideraria exageros teatrais de interpretação, e a peça foi um sucesso, reestreiando por mais de uma vez.

Celso Frateschi dirigiu e atuou em mais uma peça, mais um monólogo, no teatro Ágora. Extraiu o texto mais extraído de Dostoiévski: o Grande Inquisidor, de dentro de Irmãos Karamázov. Não tem como não ficar perplexo com os ataques de um inquisidor espanhol ao encontrar Jesus reencarnado. Acusa-o de vir atrapalhar a ordem já estabelecida:

Eu te digo que o homem não tem uma preocupação mais angustiante do que encontrar a quem entregar depressa aquela dádiva da liberdade com que esse ser infeliz nasce. Mas só domina a liberdade dos homens aquele que tranquiliza a sua consicência.

Será que não pensaste que ele (o Homem) acabaria questionando e renegando até tua imagem e tua verdade se o oprimissem com um fardo tão terrível como o livre arbítrio?

A última peça, a que fui ontem com meu pai, é A Dócil, publicada em conjunto com Sonho de um Homem Ridículo. Um curto conto, amado por muitos, mas não por mim (passei a gostar um pouco mais depois de ouvir algums interpretações). A peça foi muito bem montada, iniciando e terminando do lado de fora, disputando a atenção dos transeuntes e dos fregueses de um boteco da avenida São João com jogos decisivos do Palmeiras e do Corinthians. Alguns recursos diferentes parecem ter sido acrescentados à montagem apenas pelo diferente. Houve uma combinação forte e interessante da narrativa em primeira pessoa do passado com os curtos diálogos no presente.

As três primeiras são monólogos, e a última um diálogo em que o narrador predomina 99% do tempo. Das quatro aquela de que mais gostei e que mais me absorveu foi Memórias do Subsolo.

Não fui à recente e elogiada encenação de O Idiota não só por causa da esdrúxula duração (8 horas divididas em 3 dias), mas também por ainda não ter lido a obra. Porém aproveitei a ocasião e assisti o debate entre Paulo Bezerra e Bóris Schneiderman, os dois principais tradutores. Lá pude perceber diversas opiniões muito diferentes da minha, e algumas frases memoráveis, como quando consegui conversar um pouco com o Paulo Bezerra e ele se referenciou à morte da usurária de Crime e Castigo como uma denuncia ao “dinheiro se assenhorando das relações humanas”. Aliás, esse tema é frequente em suas obras: o protagonista de A Dócil também é um agiota. Em outro momento Paulo Bezerra citou o que se especulava ser a continuação de Irmãos Karamázov: Aliócha tornaria-se o modelo do revolucionário socialista. Será? Dostoiévski morreu antes.

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