literatura

O que é ser pseudointelectual?

Já vi por aí essa citação como definição. Aforismo 173, A Ciência Gaia. Só poderia ser Nietzsche, o mais citado entre os pseudointelectuais:

Ser profundo e parecer profundo. – Quem sabe que é profundo busca clareza; quem deseja parecer profundo para a multidão, procura ser obscuro. Pois a multidão toma por profundo aquilo cujo fundo não vê: ela é medrosa, hesita em entrar na água.

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filmes, literatura

Poesia: aprendendo a olhar

Tenho dificuldades com poesia. Entre ela e a prosa, fico com a mais fácil.

Assisti o longo e às vezes entediante filme sul coreano Poesia. Lembro que a resenha de algum colunista da Folha mencionava com especial atenção a cena da sala de aula, quando a protagonista recebe a tarefa de observar bem uma maçã. O professor decidira passar essa lição, pois considerava que “a poesia é ver melhor“. Ver melhor, como a cena acima, de Beleza Americana, que agora ganha um pouco da minha admiração. Antes, considerava essa como a pior parte desse magnífico filme.

Dias depois me deparei com o poema A Arte de ser Feliz, de Cecilia Meireles. Um texto direto e simples, e que senti passar uma mensagem muito parecida a dos dois filmes:

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Talvez seja esse o segredo, enxergar a beleza do comum, do ordinário? Parece que esse também era o segredo do Tejo de Fernando Pessoa, que sempre estava diante de sua janela, de sua aldeia:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Será que isso é poesia? Ou é apenas mais um carpediem “use filtro solar”?

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cotidiano, literatura

Quereria um Big Mac

– Boa noite, qual é o seu pedido? – diz o balconista mecanicamente
– Eu queria o número do Big Mac.
Queria? Não quer mais? – (seguido de risos)

Balconistas tiram sarro do meu português errado e gentil. Da próxima vez vou falar corretamente:

– Eu quereria o número do Big Mac.

“Quereria” é tão raramente usado que soa estranho. Há outros verbos na mesma situação, onde o erro fica bem mais evidente:

– Eu podia (poderia) comprar se tivesse o dinheiro.
– Eu até comia (comeria), mas estou sem fome.

O pretérito imperfeito lembra o futuro do pretérito em todos os verbos da segunda e terceira conjugação: “bebia“/”beberia” “pedia“/”pediria“. Na primeira conjugação, não há como errar: “cantava”/”cantaria”, “falava”/”falaria”, mas mesmo assim acontece: “Eu precisava falar com você” é uma expressão recorrente, mesmo quando o locutor ainda precisa dessa conversa. O verbo querer tem um particularidade: termina não apenas em er, mas em rer, fazendo o pretérito imperfeito ter a mesma terminação que o futuro do pretérito de todos os outros verbos: “queria” soa como “poderia” e “comeria“. O mesmo ocorre com “preferir”.

Para encontrar sua utilização corriqueira, googlei por “quereria”. Na primeira página, apenas um poema do Manoel Bandeira, que dará o toque pseudointelectual que faltava ao post:

O último poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

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literatura, religião

Sidarta e a fuga de nós mesmos

Kundun e o Pequeno Buda eram meus únicos contatos com o budismo.

Os pais de Hermann Hesse serviram numa missão protestante para difundir o cristianismo na Ásia, especialmente na India. Hesse vai conhecer o país já bem mais velho, quando se interessa mais pela religião e pelo budismo. No livro Sidarta, Hesse conta a história dessa personagem (não confundir com Sidarta Gotama, o Buda, que também é personagem no livro), saindo da alta casta religiosa, para virar um asceta. Depois de alguns anos vai conhecer a luxúria, a cupidez, o amor de uma mulher e de certa forma constituir uma família, para então atingir o nirvana ao se tornar novamente um asceta.

Durante o percurso, temos reflexões de fácil entendimento e de muita beleza, sobre relacionamento com pais, Deus, amor, riqueza e outros temas essenciais. Em busca de paz e sabedoria, seu amigo Govinda sempre recomenda a meditação. Meditação que hoje está em alta, e todo bom pseudointelectual já gastou um tempo estudando alguma técnica.

O que é a meditação? O que é o abandono do corpo? Que significa o jejum? E a suspensão do fôlego? São modos de fugirmos de nós mesmos. São momentos durante os quais o homem escapa à tortura de seu eu. Fazem-nos esquecer, passageiramente, o sofrimento e a insensatez da vida. A mesma fuga, o mesmíssimo esquecimento, o boiadeiro encontra-os na estalagem , quando bebe algumas tigelas de vinho de arroz ou de leite de coco fermentado. Então cessa de sentir o seu eu, cessa de padecer de dores, anestesia-se por algum tempo.

Misturam-se fugir e encontrar. Essa tentativa de nos encontrarmos parece ser em vão, e é mais fácil se confortar com qualquer escapismo.

Há ainda uma analogia com o arco e flecha que me lembrou de um conhecido trecho de Gibran:

Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas. O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força. Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe

A personagem do balseiro Vasudeva é quem mais me impressiona. Praticamente nada fala. Gosto muito dessa ausência de palavras, focando na arte de escutar, e Sidarta tenta aprender essa virtude do amigo:

Aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião.

Em O mito de Sísifo, Camus abre o livro com um antológico “existe apenas um problema filosófico realmente sério: o suicídio“. Em Sidarta, o suicídio também está presente e é cogitado. Em O Lobo da Estepe, o protagonista havia prometido suicidar-se aos 50 anos; Dostoiévski diz que ninguém deveria ter o castigo de viver após seus 40 anos, em Memórias do Subsolo. Tema muito recorrente entre os romancistas com um pé no existencialismo.

Excelente livro, abordando todos os assuntos que nos fazem sofrer e refletir, em um pequeno número de páginas.

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O problema do Bem

O problema do Mal é aquele dilema filosófico e religioso que soa pueril: por que o mal existe? Pergunto mais: o tal do bem existe? Quando você estende a mão para um necessitado na rua, o faz por por benevolência? Ou por interesse próprio? A gratidão do desconhecido, ou o reconhecimento do conhecido frente a sua boa ação tem valor inestimável. Sem eles continuaríamos a alimentar os pobres, fazer doações e ajudar o próximo?

Relatou a mãe de uma médica próxima à minha família, que sua filha disse: “Mãe, deixe-me estudar. Não estou fazendo isso por dinheiro ou para mostrar para alguém que eu sei, eu só quero saber cada vez mais enquanto viver“. Era a resposta para a crítica à sua carga exagerada de trabalho. Conheço a médica pessoalmente e sinto que falou honestamente. Mas não há alguma outra compensação, alguma forma de egoísmo, escondida por debaixo de toda ação altruísta? A resposta pode estar naquela coletânea de livros em que os sábios dizem encontrar todas as respostas. Isso mesmo, em Irmãos Karamázov, de Dostoiévski:

Eis a questao fundamental! É a minha questão mais torturante entre as demais. Abro os olhos e pergunto a mim mesma: aguentarias muito tempo esse caminho? E se um doente, cuja chagas lavasses, não te retrbiuísse imediatamente com a gratidão, mas, ao contrário, começasse a te torturar com caprichos, sem apreciar nem ligar para teu esforço humanitário, passasse a gritar contigo, a fazer exigências gorsseiras, até a queixar-se com algum superior…, o que farias? Teu amor continuaria ou não? Pois veja – eu mesma já conclui estremecida: se existe algo capaz de esfriar imediamente o meu amor “ativo” pela humanidade, esse algo é unicamente a ingratidão. Numa palavra, trabalho por dinheiro, exijo pagamento imediato, ou seja, que me elogiem e que amor com amor se pague. De outro modo não sou capaz de amar ninguém!

Sem a gratidão lavaríamos as chagas de outros? Talvez nem mesmo as nossas. Se ao ajudar um pedinte da rua, cuja sanidade já não podia ser verificada com precisão, você recebesse um soco no peito depois de comprar o croissant e leite que ele desejara? E depois, chocado e sem reação, com um volume grande de adrenalina no sangue, ouvisse-o vociferar de que ele é na verdade um policial árabe e mimicasse sacar um revólver da própria pele, como se ele estivesse dentro do seu rim, qual seria sua atitude? Na ausência da gratidão, na presença da ingratidão, você ofereceria a outra face, sem esperar recompensa na imortalidade?

No mesmo livro tem outra passagem que me impressiona. A mesma de onde parafraseamos como “se Deus não existe, tudo é permitido“. Ivan diz que o bem pode até existir, mas só existe pela crença na imortalidade, onde haveria gratidão ou acerto de contas:

… ele (Ivan Karamazov) declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu a lei natural mas tão-só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade. Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruido-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situacão.

Uma reflexão sobre a base judaico-cristã do castigo, do galardão. Em o Lobo da Estepe, Hermann Hesse mostra esse conflito interno ao enxergar uma boa ação como inócua:

Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convia, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba.

Prefiro me abster desse pensamento.

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Se eu fechar os olhos agora

Esse ano o prêmio Jabuti deu muito o que falar. Aproveitei para ler esse livro, de Edney Silvestre, que parece ser alguém famoso do jornalistmo da rede Globo.

Dois meninos crescendo nos anos 60, investigando a morte de uma mulher. Um pouco policial, um pouco histórico. Há um certo stream of consciousness, mas sem dificultar a leitura como acontece pra mim com James Joyce. Tem 300 páginas, mas é um livro curto, já que há bastante espaço em branco nos rápidos (e divertidos) diálogos. Muitas vezes os dois meninos-detetives são uníssonos no diálogo ou se completam, como neste, em que Eduardo começa, e Paulo sempre meneia a cabeça:

– Nós sabemos que não somos crianças…
– Não somos.
– Mas vocês adultos acham que somos.
– Acham.
– Agorinha mesmo o senhor nos chamou de meninos.
– Chamou.

Lembrou-me dos dois palhaços do Inpetor Geral de Gogól. Diálogos bonitos e que remetem ao companheirismo pueril, com um toque de O Gênio do Crime. Curiosamente os protagonistas, juntos, foram meu nome: Paulo e Eduardo. Coincidências menores que essas seriam o suficiente para impactar a minha leitura.

Algumas vezes os meninos conversam como adultos. Isso me incomoda bastante: tirar a verossimilhança que está sempre presente nas obras que gosto. Parecido com Kolia e seus amigos em Irmãos Karamazov. Talvez eu veja Dostoiévski em tudo. Melhor: vejo tudo em Dostoiévski, como todo bom pseudointelectual. Em outros momentos são usadas palavras que eu diria serem modernas, ou ainda comparações contemporâneas, como dizer que uma situação é pior que um “melodrama mexicano”. Por mais que possa ser verídico (não sei se é), já eram famosas e melosas as novelas mexicanas em 1960? E o fim do livro é um melodrama, no bom sentido, dando nó na garganta: “Se eu tivesse um irmão, queria que fosse você“.

Leitura fácil e agradável. A parte investigativa tem o estilo que eu gosto: não é como Holmes que deduz tudo e só revela no final o raciocínio, mas também é mais rápido que Poirot. Por diversas vezes o texto pula alguns momentos que se tornariam óbvios, e você mesmo faz a ligação entre o que aconteceu entre uma passagem a outra.

Lendo a contra capa Luiz Ruffato diz que “o corpo de Anita é transubstanciado no corpo do Brasil“. Não gosto de interpretações mirabolantes, mas talvez o autor queira mesmo mostrar algo assim, já que diz “nada neste país é o que parece! E esta cidade é um microcosmo do Brasil“. Em diversas ocasiões, os personagens, no meio da investigação, reclamam ou elogiam a ditadura, Getúlio, Jãnio e Juscelino. Poderia ser uma abordagem interessante, mas essas discussões aparecem em pontos que, na minha opinião, não se encaixam. O livro continuaria bom sem essa “profundidade”, prefiro as referências a filmes e outros fatos que o livro também faz.

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iPad ou Kindle, qual é o melhor leitor digital?

comparativo entre ipad e kindle Em outubro li meus dois primeiros livros em leitores digitais. Li ambos utilizando o software Kindle Reader da Amazon, e variava entre usar o dispositivo Kindle propriamente dito e usar o iPad. Cheguei até a ler pedaços desses livros no reader no próprio Mac e em um celular Android, graças ao fundamental recurso de sincronizar entre aparelhos, possibilitando a leitura a partir da última “página” visitada.

Os livros foram The Humbling, do Philip Roth (na esperança de gostar tanto quanto Everyman) e We, de Yevgeny Zamyatin, precursor de 1984 e Admirável Mundo Novo. Ambos são curtos, mas demorei bastante para ler We, não sei exatamente o porquê: talvez a tradução do russo do começo do século XX para o inglês com palavras novas para mim, ou até mesmo os nomes dos personagens fáceis de confudir, pois são todos números.

Direto ao ponto: dado o peso e preço do iPad, além de sua difícil utilização mesmo para responder emails profissionalmente, o meu campeão é o Kindle. Se futuramente o iPad ficar menor e bem mais leve, poderá justificar seu preço alto. Resultado: vendi meu iPad praticamente sem uso e quero comprar o Kindle do meu pai.

Segurar um iPad sem apoio é bastante cansativo, e, mesmo minha literatura sendo noturna, é bastante incômodo ajustar sua posição até achar uma sustentável. Depois você fica naquele estado de tensão: não pode se mexer ou precisará reorganizar sua postura para que o peso do iPad não consuma toda ATP de seus pulsos. O Kindle é mais leve do que um livro de tamanho médio, sem contar seu tamanho. Já que nunca leio sob sol, o LCD do iPad não seria um problem. Nessa questão de luz, para mim, o Kindle perde um pouco: preciso ligar o abajur para utilizá-lo à noite.

Sobre o software do Kindle (Kindle Reader, para diferenciar do aparelho), que roda tanto no iPad quando no Kindle, ele é idêntico em ambos dispositivos. Acho que há ainda um longo caminho a percorrer: o software só possui dicionário inglês, não possibilita tradução de termos e palavras de maneira fácil e utiliza números e porcentagem em vez de páginas, que é bastante confuso e dá a sensação de você estar parado na leitura. Há pontos positivos que surpreendem, desde a sincronização que falei aqui, até a forma que ele indica as seções mais destacadas por outros leitores, mostrando um futuro promissor de como iremos compartilhar e debater mais os livros.

Algumas edições são péssimas. Desconfie dos preços baixos e leia os comentários. As publicações em português parecem ser oportunistas em sua grande maioria, até mesmo com digitalizações incompletas. Mesmo livros clássicos das principais editoras possuem graves erros, desde layout até de mispelling. Foi o caso com o We, e eu cheguei a dar uma estrela na amazon, dado erros crassos de digitalização (como o absurdo de trocar a letra I pelo número 1! onde está a revisão?). A Amazon respondeu dizendo que repassou ao publisher.

Não faz parte do papel de um leitor digital, mas sobre o quesito internet, onde o iPad deveria brilhar, ainda deixa a desejar: responder emails ou realizar qualquer outra tarefa que utilize o teclado virtual é um sacrifício, para não dizer impossível caso você não tenha um apoio. O browser do Kindle é realmente primitivo, mas se você só necessitar usar a internet em casos de emergência com o seu leitor, ele quebra o galho. Além de ter “3G ilimitado” no Brasil.

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A produção teatral de Dostoiévski

Dostoievski Não há. Ele não escreveu nenhuma peça. Aqui no Brasil, depois da primeira grande tradução de Paulo Bezerra pela editora 34, Crime Castigo, Dostoiévski é o maior sucesso de releitura que eu possa imaginar. Isso trouxe diversas adaptações para os palcos brasileiros. Não sou um frequentador de teatro, mas dada a paixão pelo escritor eu assisti a algumas delas.

A primeira encenação foi a de Sonho de Um Homem Ridículo, no teatro Ágora, com Celso Frateschi. O ator e diretor parece ser realmente um fã. O texto, apesar de ter o estilo de monólogo de que eu gosto, não me empolga. A peça foi cansativa, mesmo sendo curta. Quem conhece o estabelecimento sabe como lá às vezes fica muito quente, o que creio ter atrapalhado bastante. Mas Celso não iria parar por aí…

Depois teve a encenação do meu livro favorito, Memórias do Subsolo. A peça é extremamente fiel ao texto e eu podia reconhecer diversas das frases que me marcaram muito, aquelas que a gente circula com lápis:

Todo homem tem algumas lembranças que ele não conta a todo mundo, mas apenas a seus amigos. Ele tem outras lembranças que ele não revelaria nem mesmo para seus amigos, mas apenas para ele mesmo, e faz isso em segredo. Mas ainda há outras lembrancas em que o homem tem medo de contar até a ele mesmo, e todo homem decente tem um consideravel numero dessas coisas guardadas bem no fundo. Alguém até poderia dizer que, quanto mais decente é o homem, maior o número dessas coisas em sua mente.

É o livro que deixa a todos inquietos: elogia os homens de ação, e também os ridiculariza, denunciando a inutilidade de tentar fazer algo frente a nossa insignificância:

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui definido positivamente; haveria o que dizer de mim. “Preguiçoso!” realmente é um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me respeitar incessantemente.

A atriz Mika Lins foi excelente, sem o que eu consideraria exageros teatrais de interpretação, e a peça foi um sucesso, reestreiando por mais de uma vez.

Celso Frateschi dirigiu e atuou em mais uma peça, mais um monólogo, no teatro Ágora. Extraiu o texto mais extraído de Dostoiévski: o Grande Inquisidor, de dentro de Irmãos Karamázov. Não tem como não ficar perplexo com os ataques de um inquisidor espanhol ao encontrar Jesus reencarnado. Acusa-o de vir atrapalhar a ordem já estabelecida:

Eu te digo que o homem não tem uma preocupação mais angustiante do que encontrar a quem entregar depressa aquela dádiva da liberdade com que esse ser infeliz nasce. Mas só domina a liberdade dos homens aquele que tranquiliza a sua consicência.

Será que não pensaste que ele (o Homem) acabaria questionando e renegando até tua imagem e tua verdade se o oprimissem com um fardo tão terrível como o livre arbítrio?

A última peça, a que fui ontem com meu pai, é A Dócil, publicada em conjunto com Sonho de um Homem Ridículo. Um curto conto, amado por muitos, mas não por mim (passei a gostar um pouco mais depois de ouvir algums interpretações). A peça foi muito bem montada, iniciando e terminando do lado de fora, disputando a atenção dos transeuntes e dos fregueses de um boteco da avenida São João com jogos decisivos do Palmeiras e do Corinthians. Alguns recursos diferentes parecem ter sido acrescentados à montagem apenas pelo diferente. Houve uma combinação forte e interessante da narrativa em primeira pessoa do passado com os curtos diálogos no presente.

As três primeiras são monólogos, e a última um diálogo em que o narrador predomina 99% do tempo. Das quatro aquela de que mais gostei e que mais me absorveu foi Memórias do Subsolo.

Não fui à recente e elogiada encenação de O Idiota não só por causa da esdrúxula duração (8 horas divididas em 3 dias), mas também por ainda não ter lido a obra. Porém aproveitei a ocasião e assisti o debate entre Paulo Bezerra e Bóris Schneiderman, os dois principais tradutores. Lá pude perceber diversas opiniões muito diferentes da minha, e algumas frases memoráveis, como quando consegui conversar um pouco com o Paulo Bezerra e ele se referenciou à morte da usurária de Crime e Castigo como uma denuncia ao “dinheiro se assenhorando das relações humanas”. Aliás, esse tema é frequente em suas obras: o protagonista de A Dócil também é um agiota. Em outro momento Paulo Bezerra citou o que se especulava ser a continuação de Irmãos Karamázov: Aliócha tornaria-se o modelo do revolucionário socialista. Será? Dostoiévski morreu antes.

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Menino de Engenho
literatura

Menino de engenho, de casa grande

Menino de Engenho Achei que tivesse lido na época de colégio, mas nenhuma lembrança apareceu nessa teórica releitura de Menino de Engenho, de José Lins do Rego. É um livro curto, agradável e de narrativa em primeira pessoa. Uma leitura fácil, que sempre é minha preferência.

As descrições dos rios, da cabeça da cheia correndo e das armadilhas de passarinho mexe com qualquer um que passou um tempo de sua infância na fazenda, em qualquer fazenda, mesmo que meia dúzia de férias de inverno. “Um sonho de menino é maior que de gente grande, porque fica mais próxima da realidade” e ao final da infância, e do livro, “perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os outros“. Os contos de dona Totonha, que depois vieram a embasar um livro, são docemente recordados. Dona Totonha “possuía um pedaço do gênio que não envelhece“. Há também a produção de Glauber Rocha para o cinema, que ainda não vi.

Ele faz questão de deixar claro a aceitação dos negros e dos párias do engenho, de terrível miséria, e da aceitação dessa situação: “A cheia tinham-lhes comido os roçados de mandioca, lavando o quase nada que tinham. Mas não elvantavam os braços para imprecar, não se revoltavam. Eram uns cordeiros“, … “homens que ningéum davam nada por eles – mas uma gente com quem se podia contar na certa para o trabalho mais duro e a dedicação mais canina“, … “suas filhas e netas iam-lhes sucedendo à servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de animais domésticos“, além de “senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão como um ultraje“.

Com essas passagens e lendo agora Casa Grande & Senzala, percebo que a amizade de Gilberto Freyre e José Lins era realmente grande. Fico também com a má impressão de que há uma velada e apologia à pobreza, à ignorância e à servilidade: “e eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam de fome e tinham o sol, a lua, o rio, a chuva e as estrelas para brinquedos que não se quebravam” sobre os filhos dos párias em suas péssimas condições. Fica também bastante claro a dificuldade do explorador em ver a situação do explorado, talvez em especial por uma razoável convivência entre os dois:

O costume de ver todo dia essa gente na sua degradação me habituava com sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros., comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós eramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, no mato.

A casa grande realmente vencia com facilidade a senzala e a igreja. Parece que ainda vence seus cordiais amigos.

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